Lei penal no tempo
Alexandre
Rocha Almeida de Moraes
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada na Conferência Especializada Interamericana em San José, na Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, disciplinou em seu art. 9º os princípios da legalidade e retroatividade da lei penal a todos os países signatários. Ao Brasil, nessa condição, é compulsório que obedeça a regra,1 por força da convencionalidade prevista no § 3° do art. 5° da Constituição Federal, eis que se trata de Tratado ratificado por maioria simples e aprovado até o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, com hierarquia supralegal, segundo o STF.
Não
obstante, há historicamente previsão constitucional desses princípios nas
Constituições brasileiras, sendo certo que o texto da Carta de 1988
expressamente contemplou a legalidade2 e a retroatividade
benéfica3 da lei penal como garantias individuais e fundamentais
e verdadeiras cláusulas pétreas.
1. Conceito
2. Fundamento e utilidade
3. Espécies de extraticidade da Lei Penal
4. Sucessão/conflito de leis no tempo
4.1. Competência para aplicação
4.2. Lex mitior e vacatio legis
4.3. Crime continuado e crime permanente
4.4. Princípio da continuidade normativo-típica
4.5. Lei intermediária
5. Lei temporária e excepcional
6. Retroatividade da lei interpretativa e dos precedentes
jurisprudenciais
1.
Conceito
As garantias fundamentais da legalidade e retroatividade
benéfica previstas na Constituição de 1988 já estavam previstas nos arts. 1o e
2o do Código Penal brasileiro.
Para o ramo do direito mais drástico e severo às
liberdades individuais precisa o cidadão saber, de antemão, com um mínimo de
segurança jurídica quais são as regras do contrato social, quais a regras do
Estado de Direito, qual o limite do permitido e proibido.
Não à toa, prevê o ordenamento jurídico ser
impossível o enquadramento de uma situação fática como crime se esse não
estiver previamente previsto em lei, assim como sua pena.
A regra deve, no entanto, ser conjugada com o
tempo.
Isso porque, diferentemente da lei processual penal
que, alterada, aplica-se de imediato,4 a nova lei penal que de
qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que
decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Em outras palavras, a regra é a aplicação da lei
penal vigente ao tempo da prática do fato criminoso (princípio tempus
regit actum): a nova lei produzirá efeitos, como regra geral, no período de
sua vigência ou em consonância com a lei vigente na época do fato.
Contudo, diversamente da regra processual, o
ordenamento jurídico nacional e internacional adota a ideia de extratividade
que, muito mais do que uma exceção, torna-se a regra quando benéfica ao agente
(investigado, suspeito, réu, condenado etc.).
A extratividade da lei penal implica, portanto, a
possibilidade de uma lei disciplinar situação de fato fora de seu
período de vigência.
2. Fundamento
e utilidade
A lei penal no tempo é regida por três princípios
fundamentais: legalidade prévia, irretroatividade e extratividade benéfica que
como se verá ocorre na forma de ultratividade ou retroatividade favoráveis ao
agente que praticou um fato supostamente criminoso.
A partir dessas regras e princípios, qualquer
elemento contido no preceito primário ou secundário de uma norma penal
incriminadora (elementares de um crime ou pena) deve obedecer a ideia de
anterioridade ou legalidade prévia, sem possibilidade, como regra, de aplicação
retroativa.
De outra parte, uma lei tacitamente ou
expressamente revogada também poderá ser aplicada futuramente para fatos
perpetrados sob sua vigência, desde que ela seja mais favorável ao agente em
comparação com a lei nova.
Em outras palavras, aferir se a nova lei penal é
favorável ou prejudicial ao agente é fundamental: “A lei anterior, quando for
mais favorável, terá ultratividade e prevalecerá mesmo ao tempo de vigência da
lei nova, apesar de já estar revogada. O inverso também é verdadeiro, isto é,
quando a lei posterior foi mais benéfica, retroagirá para alcançar fatos
cometidos antes de sua vigência”.5
3. Espécies de
extraticidade da Lei Penal
Em virtude do princípio da legalidade ou da reserva
legal, ilustrado pelo brocardo nullum crimen nullum poena sine praevia
lege, as condutas que posteriormente tornaram-se crime não retroagem, sendo
aplicáveis a partir de sua vigência.
Contudo, em se tratando de novatio legis incriminadora,
ou seja, uma lei posterior que criminaliza determinada conduta, aplica-se a
regra geral da irretroatividade penal.
Ocorre que é preciso verificar se a nova lei penal
é benéfica, tanto no sentido de abolir um crime anteriormente previsto em lei,
quanto beneficiar, de qualquer forma, o agente que praticou um crime regido por
lei anterior, ou ainda, se a nova lei é mais prejudicial ao agente.
Define-se a novatio legis in pejus, ou
também conhecida por lex gravior, a lei posterior que, de qualquer
modo, agrava a situação do agente.
Aplicando-se os critérios de favorecimento previsto
no ordenamento jurídico, a lei nova que prejudica o agente não retroage, ou
seja, deve ser mantida a lei revogada (ultratividade da lei vigente na época do
fato).
Em outras palavras, em Direito Penal é sim possível
aplicar uma lei revogada.
A lei revogada, quando mais favorável ao agente em
confronto com a nova lei, será aplicada e continuará a reger os fatos ocorridos
em seu tempo. Repita-se: trata-se do princípio da ultratividade da lei penal
anterior mais benéfica.
Sempre que se tratar de novatio legis in
pejus, é inadmissível a sua retroatividade, segundo posicionamento do
Supremo Tribunal Federal.6
Diversamente da lei nova prejudicial, é possível
que sobrevenha, no conflito de lei penal no tempo, uma novatio legis in
mellius, isto é, quando a lei posterior que traz um benefício, de qualquer
forma, para o agente do fato.
Dotti exemplifica que
“o advento de uma lei nova poderá beneficiar o
agente não apenas quando descriminaliza o fato anteriormente punível, mas
quando institui uma regra de Direito Penal que: (a) altera a composição do tipo
de ilícito; (b) modifica a natureza, a qualidade, a quantidade ou a forma de
execução da pena; (c) estabelece uma condição de punibilidade ou
processabilidade; (d) de qualquer outro modo é mais favorável”.7
Haverá abolição de crime quando a lei nova deixa de
considerar infração penal (crime ou contravenção) o fato anteriormente
tipificado como ilícito penal. Nesse caso, o legislador retira a ilicitude da
conduta, descriminalizando o ato que outrora era considerado como delito.
O instituto da abolitio criminis está
descrito no caput do art. 2º do CP, sendo causa extintiva da punibilidade
prevista no inciso III do art. 107, do CP.
A abolição do crime, por suprimir a figura
criminosa representa uma repactuação do contrato social até então vigente: o
legislador, em nome da sociedade e de determinado tempo social, entende não
haver mais razão para incriminar determinada conduta, retirando-a do
ordenamento jurídico-penal, fazendo ainda cessar todos os efeitos e
consequências penais até então existentes e decorrentes.8
De outra parte, os efeitos extrapenais (cíveis e
administrativos) não são atingidos pela descriminalização da conduta. Nesse
sentido, ressalta Queiroz que “embora não subsistindo quaisquer dos efeitos
penais (v.g. reincidência) persistem todas as consequências não penais (civil,
administrativo) do fato, como a obrigação civil de reparar o dano, que
independe do direito penal”.9
Por se tratar de uma revisão da própria pretensão
punitiva estatal, não há que se falar em desrespeito à coisa julgada que
representa uma garantia individual do indivíduo frente ao Estado.
Em síntese, a novatio legis in mellius e
a abolitio criminis retroagem para beneficiar o agente
criminoso, aplicando-se de forma imediata aos processos em andamento,
sentenciados ou não, assim como à execução penal.
É preciso, ademais, consignar que havendo alteração
do complemento da norma penal em branco, aplica-se a retroatividade penal da
norma mais favorável.
O assunto, contudo, sempre foi controvertido.
Há autores que sustentam que sempre há
retroatividade benéfica com a alteração do complemento da norma (Paulo José da
Costa Junior e Basileu Garcia): autores que sustentam a irretroatividade da
mudança do complemento, eis que a norma não teria sido revogada e seria tão
somente temporariamente inaplicável (Frederico Marques, Nelson Hungria,
Magalhães Noronha e Damásio de Jesus); parte da doutrina que sustenta que
somente há aplicação retroativa se houver modificação real da norma
complementar e, pois, da conduta criminosa (Júlio Fabbrini Mirabete); parte que
sustenta que é necessário verificar o critério de temporariedade no complemento
da lei penal em branco, ou seja, existindo a temporariedade (típico de normas
de vigência temporária), haverá ultratividade, inexistindo a temporariedade
haverá a retroatividade in mellius (Fernando Capez e Luiz
Régis Prado).
O STF, por fim, sustenta que em se tratando de
norma penal em branco homogênea, sempre haverá efeitos retroativos (complemento
de mesma hierarquia normativa) e, em se tratando de norma penal em branco
heterogênea, revestindo-se o complemento de excepcionalidade, não há
retroatividade e, não havendo excepcionalidade no complemento da norma penal,
incidiria a retroatividade.
4.
Sucessão/conflito de leis no tempo
Ao se tratar de conflito de normas, é preciso
distinguir, para fins didáticos, o conflito de normas simultaneamente em vigor,
daquele tratado como sucessão ou conflito de leis no tempo, ou seja, de normas
que não estavam concomitantemente em vigor.
No primeiro caso, duas ou mais normas podem ser, em
tese, aplicáveis ao caso concreto e, havendo unidade fática ou pluralidade
fática, estar-se-á, respectivamente, diante de conflito aparente de normas10
ou do concurso de crimes.11
No presente caso, há sucessão de leis no tempo,
isto é, as leis não estão em vigência simultânea e, como regra geral, a lei
penal vigente na época do fato delituoso é a que embasará o julgamento e a
execução penal do agente (tempus regit actum).
Já se sabe, contudo, que nem sempre a lei penal
vigente na época do fato regulará toda persecução penal do fato criminoso, eis
que entre a data do fato e o término do cumprimento da pena poderá haver
alteração das leis penais, ocorrendo a sucessão ou conflito de leis penais no
tempo.
O Código Penal adotou no art. 4o, a regra ou
princípio da atividade, considerando o crime praticado no momento da conduta
ativa (comissiva) ou omissiva.
Tal regra, como se sabe, é crucial para dirimir
problemas de imputabilidade, prescrição e, logicamente, para estabelecer o
marco de qual a norma deve ser aplicada, como regra, para aquele caso concreto.
Para resolver esses casos de sucessão de lei, basta
observar um único critério: aplica-se a regra penal mais benéfica ao acusado,
na forma retroativa ou ultrativa. A lei penal mais favorável é aplicada mesmo
que o fato punível tenha sido julgado, com trânsito em julgado (retroatividade)
ou mesmo que tenha sido revogada com o advento da lei nova (ultratividade).
Em suma, a apuração do conflito ou sucessão de leis
penais no tempo se dará através da análise das espécies de extratividade da lei
penal: (a) abolitio criminis; (b) novatio legis
incriminadora; (c) novatio legis in pejus; (d) novatio
legis in mellius.
Para verificar qual a lei penal mais benéfica, em
regra, é possível a sua verificação hipoteticamente. Quando ambas as leis
penais (anterior e posterior) forem de fácil constatação naquilo em que houve o
favorecimento ao agente, aplica-se desde logo a mais vantajosa ao réu.
Nas hipóteses mais complexas, “não basta a
comparação, em abstrato, de duas leis penais, para descobrir-se qual é a mais
benéfica. Elas devem ser comparadas em cada caso concreto, apurando-se quais
seriam os resultados e consequências da aplicação de uma e de outra”12 e,
nos casos de séria dúvida sobre a lei mais favorável, “deve a nova ser aplicada
somente aos fatos ainda não decididos, nada impedindo seja ouvido o réu a
respeito”.13
É possível, no entanto, que parte de uma lei
revogada seja mais favorável e parte mais prejudicial ao agente quando em
confronto com a nova lei penal: surge aqui um dos temas mais controvertidos na
doutrina e jurisprudência em matéria de conflito ou sucessão de leis penais no
tempo: a possibilidade de combinação de leis penais (a lex tertia).
A questão é historicamente dividida na doutrina
nacional.
A primeira corrente doutrinária conta com Basileu
Garcia, Damásio de Jesus, Frederico Marques, Celso Delmanto, Cezar Roberto
Bitencourt, Rene Ariel Dotti, Francisco de Assis Toledo e Magalhães Noronha e
admite a combinação de leis favoráveis ao agente, sob o fundamento de que o
juiz apenas efetua uma integração das normas, pois quem pode aplicar o todo,
pode aplicar somente uma parte dela.
A segunda corrente, defendida por Nelson Hungria,
Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso, José Henrique Pierangeli, Costa e Silva,
afirma não ser possível a fusão de leis, isto é, que não é possível dividir a
norma para aplicar a parte mais benéfica, criando uma terceira lei (lex
tertia). Para essa corrente, não cabe ao Poder Judiciário ou ao aplicador
do direito criar uma terceira lei porque estaria legislando, ofendendo o
princípio constitucional da separação de poderes. O STJ que sempre defendeu
esse entendimento,14 acabou por pacificar a questão editando a
Súmula 501, segundo a qual “é cabível a aplicação retroativa da Lei
11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na
íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei
6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis.”15
4.1.
Competência para aplicação
Para saber qual o juiz competente para a aplicação
da lei penal mais benéfica, é preciso observa a existência ou não de trânsito em
julgado da sentença.
Inexistindo trânsito em julgado da sentença
condenatória, a competência é do juízo de conhecimento (primeiro grau ou o
Tribunal, nas hipóteses de competência originária) ou do tribunal recursal,
caso esteja em grau de recurso (Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais
Federais e Tribunais Superiores).
Havendo o trânsito em julgado, compete ao Juízo da
Execução, nos termos do art. 66, I, da Lei de Execução Penal. Esse
entendimento, ademais, foi pacificado pelo STF, através da Súmula 611:
“transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções
a aplicação de lei mais benigna.”
Por fim, é preciso registrar que, ainda que haja
entendimento contrário amplamente minoritária, não é cabível a revisão criminal
para aplicação da lei mais benéfica, visto que a hipótese não se enquadra nas
situações previstas no art. 621 do CPP.
4.2. Lex mitior e vacatio legis
Em regra, a lei penal entra em vigor na data de sua
publicação, mas nem sempre é assim. Por vezes, como se sabe, o legislador
contempla, para amplo conhecimento da sociedade e destinatários da nova norma,
um período de vacatio legis.
Nessa hipótese, sancionada, promulgada e publicada
uma lei penal mais benéfica, há divergência doutrinária sobre a possiblidade de
sua aplicação imediata antes mesmo de encerrar o prazo da sua vacatio.
A primeira é majoritária, defendida por Damásio de
Jesus, Guilherme de Souza Nucci e Frederico Marques, e sustenta não ser
possível a lei nova abranger o fato anterior ou concomitante ao período
da vacatio, porque nesse momento a lei penal ainda não
possui eficácia jurídica ou social, isto é, tratar-se-ia de mera expectativa de
lei.
A segunda corrente, defendida por Rene Dotti, Celso
Delmanto e Alberto Silva Franco, sustenta que, em se tratando de lex
mitior, deve a lei ser aplicada desde logo, independentemente de estar em
período de vacatio legis ou não: “a lei em período de vacatio não
deixa de ser lei posterior, devendo ser aplicada desde logo, se for mais
favorável ao réu”.16
4.3. Crime
continuado e crime permanente
Em se tratando de crime continuado (art. 71 do CP)
ou de crime permanente (cuja consumação se prolonga no tempo), a regra é que se
aplica a lei mais nova, ainda que maléfica ao acusado.
Nessas hipóteses, havendo a modificação da lei
quando ainda em prosseguimento a prática de crime continuado ou permanente, a
lei nova é aplicada a toda a série de delitos praticados (caso seja crime
continuado) ou para o crime permanente.
Isso porque, diante da ficção da continuidade
delitiva que considerava a pluralidade de fatos uma unidade fática que
beneficia o agente, assim como do tipo incriminador permanente cuja prolongação
do tempo constitui a essência do verbo da norma penal incriminadora, não há que
se falar em conflito ou sucessão de normas, isto é, havendo lei nova que entra
em vigor durante o período de permanência ou da presumida continuidade,
aplicar-se-á a nova lei, mesmo que seja prejudicial ao agente.
Nesse sentido, o STF editou a Súmula 711: “A lei
penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua
vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”.
Aliás, na hipótese de continuidade, o STJ já
entendia que “caracterizada a continuidade delitiva, a aplicação da Lei
11.343/2006, mesmo quando mais gravosa ao sentenciado, mostra-se adequada, já
que a atividade delitiva se prolongou até a entrada em vigor da novel de
legislação de drogas. Enunciado sumular 711 do Supremo Tribunal Federal”.17
4.4. Princípio
da continuidade normativo-típica
Entende-se como o princípio da continuidade
normativo-típica quando uma lei é revogada, porém, a conduta ainda continua
incriminada em outro dispositivo legal, não ocorrendo, nessa hipótese, a abolitio
criminis.
Foi exatamente o que ocorreu com as elementares do
chamado atentado violento ao pudor que foram incorporadas ao tipo penal do
estupro no art. 213 do CP, por força da Lei 12.015/2009.18
Cunha leciona que “o princípio da continuidade
normativo-típica significa a manutenção do caráter proibido da conduta, porém
com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A intenção do
legislador, nesse caso, é que a conduta permaneça criminosa”.19
Nesse mesmo sentido, já se posicionou o STF,
sustentando que “a revogação da lei penal não implica, necessariamente,
descriminalização de condutas. Necessária se faz a observância ao princípio da
continuidade normativo-típica, a impor a manutenção de condenações dos que
infringiram tipos penais da lei revogada quando há, como in casu,
correspondência na lei revogadora”.20
Em síntese, pelo princípio da continuidade
normativo-típica não há abolição propriamente do crime, eis que o conteúdo da
norma penal incriminadora é simplesmente deslocado para outra norma penal,
havendo, pois, mera a revogação formal do artigo e subsistindo o fato típico.
4.5. Lei
intermediária
A lei intermediária representa aquela que não era
vigente ao tempo do fato e nem ao tempo do julgamento, porém, vigorou durante o
processo criminal: ela surge no interregno de tempo entre o fato criminoso e o
julgamento e prevalecerá, caso seja mais favorável, às demais leis.21
Assim, se a lei intermediária for a mais favorável,
deverá ser aplicada. Assim, a lei posterior, mais rigorosa, não pode ser aplicada
pelo princípio geral da irretroatividade, como também não pode ser aplicada a
lei da época do fato, mais rigorosa: “Por princípio excepcional, só poderá ser
aplicada a lei intermediária, que é a mais favorável. Nessa hipótese, a lei
intermediária tem dupla extratividade: é, ao mesmo tempo, retroativa e
ultrativa!”22
5. Lei
temporária e excepcional
A lei temporária é aquela que tem prazo determinado
de vigência, ou seja, é a norma que foi instituída por certo e determinado
lapso temporal de vigência.23 Já a lei excepcional é aquela
promulgada para vigorar em situações anormais, tendo sua vigência subordinada à
duração dessa circunstância emergencial que a criou.
Ambos os tipos de leis são espécies do gênero leis
auto-revogáveis, previstas no art. 3o do CP e, pela anormalidade (prazo de
duração ou situação excepcional que justifica sua vigência) possuem, sob pena
de serem completamente inócuas e descumpridas, ultratividade ainda que
maléfica.
Prado, nesse sentido, leciona que lei excepcional
“visa atender situações excepcionais, de anormalidade social ou de emergência,
não fixando prazo para sua vigência; vale dizer, tem eficácia enquanto perdurar
o fato que a motivou. De sua vez, a lei temporária prevê formalmente o período
de tempo de sua vigência, ou seja, delimita de antemão o lapso temporal em que
estará em vigor. Exige duas condicionantes: situação transitória de emergência
e termo de vigência”.24
Com efeito, sem o fundamento para a ultratividade
compulsória essas leis perderiam toda a sua força intimidativa, caso o agente
já soubesse, de antemão que, após cessada a anormalidade ou o prazo de vigência
acabaria impune pela aplicação da retroatividade benéfica.
6.
Retroatividade da lei interpretativa e dos precedentes jurisprudenciais
Hungria entende que as leis interpretativas não
podem retroagir em desfavor do réu, mas esse posicionamento, segundo Frederico
Marques, não teria valia para a interpretação autêntica que não cria nem inova
o ordenamento jurídico e, pois, deve ser aplicada de forma ex tunc.
A jurisprudência, em si, por posicionamento
majoritário da doutrina, não comporta aplicação retroativa.
Ocorre que com a adoção das Súmulas Vinculantes (EC
45/04) e com a nova disciplina de precedentes vinculantes previstas no novo
Código de Processo Civil que, historicamente, se aplica à matéria criminal
(art. 927, CPC), parte da doutrina tem sustentado que os precedentes
jurisprudenciais oponíveis erga omnes e com caráter
vinculativo, assim como as decisões em sede de controle concentrado de constitucionalidade,
teriam o mesmo poder da lei em sentido formal, no que diz respeito à criação do
direito, razão pela qual teria sim efeitos vinculantes e, portanto, e ou de
súmula vinculante, há que se falar em aplicação retroativa quando benéfica ao
agente.
Notas
1Art. 9: “Princípio da legalidade e da
retroatividade: Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no
momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito
aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no
momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a
lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso
beneficiado”.
2CF, art. 5º, XXXIX: “não há crime sem
lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
3CF, art. 5º, XL: “a lei penal não
retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
4CPP, art. 2º: “A lei processual penal
aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a
vigência da lei anterior.”
5BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado
de direito penal, v. 1, p. 162. No mesmo sentido: STF, HC 113717-SP, 1ª
Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 26.02.2013.
6STF, HC 98365-SP, 2ª Turma, rel. Min.
Cezar Peluso, j. 15.12.2009.
7DOTTI, Rene Ariel. Curso de
direito penal, p. 343. No mesmo sentido: STF, HC 114149-MS, 1ª Turma, rel.
Min. Dias Toffoli, j. 13.11.2012.
8Nesse sentido: STJ, 5ª Turma, REsp
1.107.275/SP, rel. Min. Felix Fischer, j. 04.10.2010.
9QUEIROZ, Paulo. Direito penal,
p. 108.
10Solucionado pelos Princípios da
Especialidade, Subsidiariedade, Consunção e, para a doutrina majoritária,
Alternatividade.
11Concurso material (art. 69, CP),
Concurso formal (art. 70, CP) e Continuidade delitiva (art. 71, CP).
12DELMANTO, Celso et. al. Código
Penal comentado, p. 85.
13JESUS, Damásio Evangelista de. Direito
penal, v. 1, p. 93.
14Veja nesse sentido, a título
ilustrativo: STJ, HC 124782-ES: RHC 22407-PR.
15No mesmo sentido, o STF tem se
posicionado majoritariamente contra: STF, HC 107583-MG; HC 96844-MS e HC
68416-DF.
16DOTTI, Rene Ariel. Curso de
direito penal, p. 345.
17Nesse sentido: STJ, RHC 30.851-GO,
rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 18.3.2013; quanto ao crime
permanente, veja: STJ, HC 111.120-DF, rel. Min. Laurita Vaz, j. 17.12.2010.
18Nesse sentido: STJ, HC 217531-SP, 5ª
Turma, rel. Min. Laurita Vaz, j. 02.04.2013; STJ, HC 204416-SP, 5ª Turma, rel.
Min. Gilson Dipp, j. 24.05.2012.
19CUNHA, Rogério Sanches. Manual
de direito penal, p. 106.
20STF, HC 106155-RJ, 1ª Turma, rel. Min.
Luiz Fux, j. 04.10.2011; STF, AI 804466 AgR-SP, 1ª Turma, rel. Min. Dias
Toffoli, j. 13.12.2011.
21STF, RE 418876-MT, 1ª Turma, rel. Min.
Sepúlveda Pertence, j. 30.03.2004.
23BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado
de direito penal, v. 1, pp. 167-168.
24A título ilustrativo, veja os arts. 30
e ss da Lei 12.663/2012.
25PRADO, Luiz Régis. Comentários
ao Código Penal, p. 45.
26Nesse sentido: CUNHA, Rogério Sanches.
Manual de direito penal, p. 110.
Referências
BENTO DE FARIA, Antonio. Código Penal
brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1961. Volume I.
BITENCOURT, Cezar Roberto e CONDE, Francisco
Muñoz. Teoria geral do delito. São Paulo: Saraiva, 2000.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de
direito penal: parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Volume 1.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal:
parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Volume 1.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito
penal: parte geral. Salvador: Jus Podivm, 2013.
DELMANTO, Celso et. al. Código Penal
comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
DOTTI, Rene Ariel. Curso de direito penal:
parte geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2010.
GARCIA, Basileu. Instituições de direito
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GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valério de
Oliveira. Direito penal: comentários à Convenção Americana Sobre
Direitos Humanos. Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha (org.).
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Volume 4.
HUNGRIA Hoffbauer, Nelson. Comentários ao
Código Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. Volume I. Tomo 1°.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito
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MARQUES, José Frederico. Tratado de direito
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QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral.
4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2008.
PRADO, Luiz Régis. Comentários ao Código
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ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual
de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004.
Referência:
MORAES, Alexandre Rocha Almeida de Moraes. Lei penal no
tempo. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de
Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Penal. Christiano
Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/420/edicao-1/lei-penal-no-tempo
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