1. Organização da Justiça Militar
A Justiça Castrense, como órgão do Poder Judiciário, nos termos do art. 92 da Constituição Federal de 1988, é composta pelo Superior Tribunal Militar e pelos Tribunais e Juízes Militares (CF, art. 122), competindo processar e julgar os crimes militares definidos em lei (CF, art. 124).
1.1. Justiça Militar da União
No âmbito da União, a Justiça Militar é competente para processar e julgar os membros das Forças Armadas e também civis, nos termos da Lei 8.457, de 4 de setembro de 1992.
1.1.1. Em tempo de paz
Para efeitos de administração, em tempo de paz, o território nacional divide-se em doze Circunscrições Judiciárias Militares, consoante o disposto pelo art. 2º da Lei 8.457/1992.
O Superior Tribunal Militar, com sede na Capital Federal e jurisdição em todo o território nacional, com quinze ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército e três dentre oficiais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, e cinco dentre civis, estando sua competência disciplinada pelo art. 6º da já citada lei.
Em primeira instância, a Justiça Militar da União é formada pelas Auditorias Militares, as quais são formadas por Conselhos de Justiça, que se dividem em duas espécies, a saber:
(a) Conselho Especial de Justiça, constituído pelo Juiz-Auditor e quatro juízes militares, sob a presidência, dentre estes, de um oficial-general ou oficial superior, de posto mais elevado que o dos demais juízes, ou de maior antiguidade, no caso de igualdade; e
(b) Conselho Permanente de Justiça, constituído pelo Juiz-Auditor, por um oficial superior, que será o presidente, e três oficiais de posto até capitão-tenente ou capitão.
A competência dos Conselhos de Justiça é delimitada pelos arts. 27 e 28 da Lei 8.457/1992.
Ao Conselho Especial de Justiça, em que impera o princípio da identidade física do juiz, compete processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais nos delitos previstos na legislação penal militar.
Em relação ao Conselho Permanente de Justiça, cujos membros militares são alterados trimestralmente, cabe indicar suas atribuições: processar e julgar acusados que não sejam oficiais, ou seja, praças e civis; decretar a prisão preventiva de acusado, revogá-la ou restabelecê-la; conceder mensagem e liberdade provisória, bem como revogá-las; decretar medidas preventivas e assecuratórias, nos processos pendentes de seu julgamento; declarar a inimputabilidade de acusado nos termos da lei penal militar, quando constatada aquela condição no curso do processo, mediante exame pericial; decidir as questões de direito ou de fato suscitadas durante instrução criminal ou julgamento; ouvir o representante do Ministério Público sobre as questões suscitadas durante as sessões; conceder a suspensão condicional da pena, nos termos da lei; e, por fim, praticar os demais atos que lhe forem atribuídos em lei.
1.1.2. Em tempo de guerra
Em tempo de guerra são órgãos da Justiça Militar da União junto às forças em operações os Conselhos Superiores de Justiça Militar, os Conselhos de Justiça Militar e os Juízes-Auditores. Segundo o artigo 90 da Lei 8.457/1992, compete a esses órgãos o processo e o julgamento dos crimes praticados nos chamados “teatros de operações militares”5 ou em território estrangeiro, militarmente ocupados por forças brasileiras, ressalvado o disposto em tratados e convenções internacionais.
O Conselho Superior de Justiça Militar atua como órgão de segunda instância e é formado por dois oficiais-generais, de carreira ou reserva convocado, e um Juiz-Auditor, todos nomeados pelo Presidente da República. Sua competência abrange processar e julgar originariamente os oficiais-generais; julgar as apelações interpostas das sentenças proferidas pelos Conselhos de Justiça e Juízes-Auditores; e julgar os embargos opostos às decisões proferidas nos processos de sua competência originária.
Os Conselhos de Justiça Militar, por sua vez, compõem-se de um Juiz-Auditor ou Juiz-Auditor Substituto e dois oficiais de posto superior ou igual ao do acusado, observado, na última hipótese, o princípio da antiguidade de posto, sendo competente para o julgamento dos oficiais até o posto de coronel, inclusive, cabendo-lhe, ainda, decidir sobre o arquivamento de inquérito e instauração de processo, nos casos de violência praticada contra inferior para compeli-lo ao cumprimento do dever legal ou em repulsa à agressão.
Já as Auditorias Militares funcionarão nos teatros de operações, sendo formada de um Juiz-Auditor, um Procurador, um Defensor Público, um Secretário e auxiliares necessários, podendo as duas últimas funções ser exercidas por praças graduadas, com competência para os processos em que forem réus praças, civis ou oficiais até o posto de capitão-de-mar-e-guerra ou coronel, inclusive, e, ainda, julgar as praças e os civis.
Nesse contexto, importa salientar que o Código Penal Militar, em seu art. 10, classifica aqueles que são considerados crimes militares em tempos de guerra, destacando a condição de que crimes previstos no Código Penal e em legislação extravagante terão o status de infrações militares e passíveis de julgamento, portanto, desde que praticadas dentro das condições previstas no dispositivo pela Justiça Militar.
1.2. Justiça Militar do Estados
No que tange às unidades da Federação, a Constituição Federal normatiza em seu art. 125 que os Estados organizarão suas respectivas Justiças Militares, observados os princípios estabelecidos na Constituição, consignando ainda em seu § 3º que a lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar Estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes.
Mais adiante, o § 4º do art. 125, com redação dada pela Emenda Constitucional 45, dispõe que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados (policiais militares e bombeiros), nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
Outrossim, com a redação dada pela mencionada Emenda 45, o § 5º desse dispositivo legal regula que compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares.
Assim, nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a Justiça Militar possui primeira e segunda instâncias. A primeira instância é formada pelas Auditorias Militares, enquanto a segunda é constituída pelo Tribunal de Justiça Militar.
Nos outros Estados da Federação, a Justiça Militar é composta pelas Auditorias Militares, sendo que os Tribunais de Justiça funcionam como órgãos de segunda instância.
Finalmente, cumpre destacar que após a Emenda Constitucional 45 a nomenclatura do juiz togado na Justiça Militar Estadual deixou de ser “Juiz-Auditor” e passou a ser “Juiz de Direito”, passando também a presidência dos trabalhos ao juiz de carreira quando antes cabia ao militar de maior patente, peculiaridade mantida na Justiça Militar da União.
2. Do crime militar
Impossível o estudo da competência em matéria processual penal militar sem se atentar à legislação substantiva, porquanto prevê este codex, apesar de estranhamente, parâmetros objetivos para sua fixação (cf. art. 9º e art. 10 do Código Penal Militar).
Crime militar, sob o aspecto formal, é toda e qualquer violação registrada pela lei penal militar a que se impõe uma pena. Sob o aspecto material, contudo, é a conduta que afronta o bem jurídico tutelado pelo Código Penal Militar de uma maneira tal que seja necessário o uso da norma especial para censurá-la.
Conquanto possa parecer lacônico tal conceito, cumpre esclarecer que não há no Código Penal Militar uma definição legal acerca de crime militar, havendo tão-somente fatos típicos caracterizados como ilícitos, donde se depreende que o legislador adotou o critério ratione legis para definição de crime militar.
José da Silva Loureiro Neto chama atenção para a falta de critério científico para a definição de crime militar quando afirma que “A classificação do crime militar não tem obedecido critério uniforme, variando através dos tempos de acordo com a legislação de cada país”.6
Esse mesmo autor ainda aduz que
“A definição pura do crime militar, crime que por militar pode ser praticado, depois de Esmeraldino Bandeira, que admitiu a concepção dos crimes própria e impropriamente militares, tornou-se letra morta, e os chamados crime impropriamente militares criaram na mentalidade dos legisladores da época uma fonte interminável de conceituações de tais crimes, que a definição de crime militar passou a ser esta: ‘crime militar é todo aquele que a lei assim o reconhece’. Embora especificamente não o seja, o legislador assim o entendeu e dessa forma tem que ser apreciado”.7
Ainda a ilustrar o que aqui é exposto, tem-se o posicionamento de Célio Lobão sobre o tema:
“Como não poderia de acontecer, o Código Penal Militar em vigor, seguindo o de 1944, e em obediência ao mandamento constitucional da época, que continua inalterado na atual Lei Maior (art. 124: 'crimes militares definidos em lei'), adotou o critério ratione legis, ou critério objetivo, na classificação do crime militar, sem, no entanto, dispensar outros critérios que, subordinados ao ratione legis, constituem elementos de caracterização do tipo penal impropriamente militar com definição idêntica no Código Penal Militar e no comum”.8
Essa assertiva mostra-se mais correta quando se atenta ao art. 124 da Constituição Federal, que ao fixar a competência da Justiça Militar, coloca que a mesma é competente para processar e julgar os crimes militares definidos em lei.
Difere o crime comum do militar em razão do bem jurídico tutelado, haja vista que presente um plus na proteção prevista no Código Penal Militar, ainda que indiretamente, com as instituições militares, o que justificaria a pena diferenciada de crimes previstos tanto na legislação comum como na especial.
Nesse sentido são as considerações de Cícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streinfinger acerca do conceito do “bem jurídico penal militar”,9 enxergando, como dito, espécie de “crime lesa-majestade” em toda e qualquer infração.
No que diz respeito ao assunto, é pertinente a consideração de Hélio Lobo:
“Ao crime comum se opõe, conforme a lição clássica, o crime militar. Um regula-o, a lei comum; outro, a lei de exceção. Para aquelê, o direito do paisano; para êste, o direito do soldado. O primeiro tem sua repressão empreendida pelo código penal ordinário, é o homicídio, o ferimento, o furto. O segundo recebe uma codificação à parte, é o homicídio praticado por soldado, a deserção, o abandono de posto”.10
Portanto, pode-se gravar que o crime militar possui uma gama de bens jurídicos maior do que os crimes comuns, uma vez que traz ínsito a defesa da instituição e de seus pilares.
2.1. Crime propriamente militar
No que toca às diferenças entre os crimes propriamente e impropriamente militares, conquanto boa parte da doutrina aponte a desnecessidade da distinção, fato é que a própria Constituição Federal (art. 5º, inciso LXI), o Código Penal Militar (art. 64, inciso II) e o Código de Processo Penal Militar (art. 614, inciso III) apontam, ainda que modo indireto, diferença no tratamento entre um e outro.
Melhor explicando, em regra e em linhas gerais, crime propriamente militar é aquele que não encontra correspondente na legislação penal comum (p. ex.: deserção, oposição à ordem de sentinela, conspiração etc.).
A esse respeito, pondera Esmeraldino Olímpio Torres Bandeira:
“Entre nós é usual e corrente a divisão de taes crimes em – propria ou puramente militares; e em impropria ou accidentalmente militares. Os primeiros suppõem, a um tempo, a qualidade militar no acto e caracter militar do agente. São os crimes conforme o ensinamento de certa doutrina, constituem um residuo de infracções irreductiveis ao direito commum. Os segundos são crime intrinsecamente communs, mas que se tornam militares já pelo caráter militar do agente, já pela natureza militar do local, já pela anormalidade da época ou do tempo em que são commetidos”.11
É justamente sobre o agente do delito que Célio Lobão faz sua distinção entre crime militar próprio e impróprio ao comentar que:
“(...) em face do direito positivo brasileiro, o crime militar é a infração penal prevista na lei penal militar que lesiona bens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares, às suas atribuições legais, ao seu funcionamento, à sua própria existência, no aspecto particular da disciplina, da hierarquia, da proteção à autoridade militar e ao serviço militar. As ofensas definidas na lei repressiva castrense que dizem respeito à destinação constitucional, às atribuições legais das instituições militares, à autoridade militar, ao serviço militar, têm, como agentes, tanto o civil como o militar, enquanto as que atingem a disciplina e a hierarquia têm como destinatário somente o Militar”.12
2.2. Crime impropriamente militar
Se o crime propriamente militar é aquele previsto unicamente na legislação penal castrense, poder-se-ia então afirmar que crime impropriamente militar é aquele previsto em ambos os estatutos repressivos (p. ex.: homicídio, concussão, peculato etc.).
Essa definição, entretanto, não é completa.
Ramagem Badaró esclarece que:
“Vale anotar que, crimes comuns há, afetando a organização, a ordem, a finalidade das instituições militares, passam a subsistir como crimes militares. Daí serem denominados de crimes impropriamente militares. Por isso que a lei ordinária define não só os crimes militares propriamente ditos, como tipifica os delitos comuns que, sob certas circunstâncias ou condições, tomam a característica de crimes militares, impróprios. Tal acontece porque os crimes propriamente militares só podem ser praticados por militares, sem cuja qualidade do sujeito do delito, o fato criminal perde a condição de crime propriamente militar inclusive para que a figura delituosa se verifique e realize”.13
Segundo Célio Lobão
“O Código Penal Militar distingue três espécies de crime impropriamente militares: os previstos exclusivamente no diploma repressivo castrense; os definidos de forma diversa na lei penal comum; os com igual definição no Código Penal Militar e no Código Penal”.14
2.3. Crime militar de tipificação direta
Por crimes militares de tipificação direta pode-se entender como aqueles que ou não estão previstos ou estão previstos de forma diversa pela lei penal comum, como, por exemplo, a deserção (CPM, art. 187) ou a insubmissão (CPM, art. 183) sendo que para este último, embora praticado por civil, somente está previsto na lei penal castrense.
Essa é a inteligência do art. 9º, I, do Código Penal Militar, o qual disciplina que se consideram crimes militares em tempos de paz os crimes de que trata o Código Penal Militar, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previsto qualquer que seja o agente, salvo disposição especial.
Ao comentar sobre o crime militar de tipificação direta, Renato Brasileiro de Lima observa que “para o juízo de tipicidade de tais delitos, basta a descrição típica da parte especial do Código Penal Militar, na medida em que o inciso I, do art. 9º, não contém qualquer circunstância que possa ser constitutiva de um tipo penal.15
Esse mesmo autor ainda afirma que não se pode confundir o conceito de crime militar próprio com o conceito de crime militar de tipificação direta, pois “crime próprio é aquele que só pode ser praticado por militar. Já os crimes militares de tipificação direta podem ser praticados tanto por militar quanto por civil”.16
2.4. Crime militar de tipificação indireta
Os crimes militares de tipificação indireta são aqueles que estão previstos tanto no Código Penal Comum como no Código Penal Militar, contudo, para um correto juízo de tipicidade faz-se necessária a conjugação do tipo previsto na parte especial com as disposições do art. 9º, incisos II e III, do Código Penal Militar.
2.5. Dos crimes militares em tempos de paz
Os crimes militares em tempos de paz vêm definidos pelo art. 9º do Código Penal Militar:
“Crimes militares em tempo de paz
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;
II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. (Redação dada pela Lei nº 12.432, de 2011).”
O Livro I da Parte Especial do Código Penal Militar traz o rol dos chamados crimes militares em tempos de paz, englobando-se, assim, os crimes definidos nos arts.136 a 354 desse Estatuto repressor.
2.6. Dos crimes militares em tempo de guerra
O Código Penal Militar, em seu art. 10, classifica aqueles que são considerados crimes militares em tempos de guerra, destacando a condição de que crimes previstos no Código Penal e em legislação extravagante terão o status de infrações militares e passíveis de julgamento, desde que praticadas dentro das condições previstas no dispositivo pela Justiça Militar:
“Crimes militares em tempo de guerra
Art. 10. Consideram-se crimes militares, em tempo de guerra:
I - os especialmente previstos neste Código para o tempo de guerra;
II - os crimes militares previstos para o tempo de paz;
III - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum ou especial, quando praticados, qualquer que seja o agente:
a) em território nacional, ou estrangeiro, militarmente ocupado;
b) em qualquer lugar, se comprometem ou podem comprometer a preparação, a eficiência ou as operações militares ou, de qualquer outra forma, atentam contra a segurança externa do País ou podem expô-la a perigo;
IV - os crimes definidos na lei penal comum ou especial, embora não previstos neste Código, quando praticados em zona de efetivas operações militares ou em território estrangeiro, militarmente ocupado.”
Os crimes militares em tempos de guerra são tipificados no Livro II da Parte Especial do Código Penal, inseridos entre os arts. 355 a 408 do codex.
3. Foro militar
O Código de Processo Penal Militar trata do foro militar em tempo de paz e em tempo de guerra, definindo-o como especial.
No que toca ao foro militar, Célio Lobão assinala que “é especial porque nele se realiza a lei penal especial, através do diploma processual penal militar, igualmente especial. Diante disso, uma característica inconfundível do processo especial reside na variação do rito e na especialidade do juízo”.17
Ao tratar do foro militar, Ramagem Badaró indica que “o foro militar abrangerá os civis que, em lugar sujeitos à administração militar, cometem crimes definidos em lei militar ou na lei penal comum, contra pessoa investida de autoridade militar”.18
Com a redação dada pela Lei 9.299/1996, o art. 82 do referido diploma legal dispõe que o foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz.
O mesmo dispositivo legal ainda traz que estão sujeitos ao foro militar, nos crimes definidos em lei contra as instituições militares ou a segurança nacional, os militares em situação de atividade e os assemelhados na mesma situação; os militares da reserva, quando convocados para o serviço ativo; os reservistas, quando convocados e mobilizados, em manobras, ou no desempenho de funções militares; os oficiais e praças das Polícias e Corpos de Bombeiros Militares, quando incorporados às Forças Armadas (CPPM, art. 82, I).
Ainda em tempos de paz, nos crimes funcionais contra a administração militar ou contra a administração da Justiça Militar, estão sujeitos ao foro militar os auditores, os membros do Ministério Público, os advogados de ofício e os funcionários da Justiça Militar (CPPM, art. 82, II), atentando, evidentemente, por simetria, o foro especial no caso dos magistrados e membros do parquet.
O Código de Processo Penal Militar ainda dispõe que o foro militar se estenderá aos militares da reserva, aos reformados e aos civis, nos crimes contra a segurança nacional ou contra as instituições militares, como tais definidos em lei. Entretanto, nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum (CPPM, art. 82, §1º e §2º).
Sobre o foro militar da União, Célio Lobão aponta que:
“O inciso I do art. 82 do CPPM especifica quem se encontra sujeito a ele, nos crimes contra as instituições militares definidos no CPM (critério ratione legis e critério objetivo - arts. 124 e 125, § 4°, da CF). Nos termos da lei processual penal militar, estão sujeitos ao foro militar federal, nos crimes militares definidos no CPM: o militar das Forças Armadas em situação de atividade (da ativa); o militar da reserva, quando convocado para o serviço ativo; os reservistas, quando convocados para o serviço ativo; os oficiais e praças das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros Militares, quando incorporados às Forças Armadas, considera-se que são forças auxiliares e reserva do Exército. Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, o militar responde no Tribunal do Júri. A respeito dos reservistas, ressalvamos as expressões, 'quando convocados e mobilizados, em manobras, ou no desempenho da função militar'. O reservista e o militar da reserva, quando convocados, são militares da ativa, independente de se encontrarem mobilizados, em manobras, ou no desempenho da função militar (arts. 82, I, “a” a “d”, do CPPM, 9°, parágrafo único, do CPM, 124, 22, XXI, e 144, § 6°, 1ª parte, da CF)”.19
Com relação aos bombeiros e policiais militares, vale lembrar que, pela prática de crime militar definido no Código Penal Militar, eles submetem-se ao Juízo Militar do Estado (unidade federativa) a qual pertencem, com exceção dos crimes dolosos contra a vida cometidos contra civil (art. 125, § 4°, da CF), cujo julgamento é do Tribunal do Júri.
Já em tempo de guerra, a lei processual militar assinala que o foro militar poderá, por lei especial, abranger outros casos, além dos previstos no codex (CPPM, art. 83).
Nesse aspecto, Célio Lobão esclarece que “Em tempo de guerra, o foro militar terá sua competência ampliada, em conformidade com a legislação editada na época da anormalidade (art. 83 do CPPM)”.20
4. Competência da Justiça Militar
Nos termos do art. 124, 124 da Constituição Federal, à Justiça Militar compete o julgamento dos civis e militares acusados da prática de crimes tipificados no Código Penal Militar, 21necessitando para se confirmar sua competência, em tempo de paz, a subsunção da conduta a qualquer das hipóteses do art. 9º, incisos I, II e III do referido codex, servindo, principalmente, como diploma voltado à proteção dos bens jurídicos de interesse das Forças Armadas.22
Cumpre registrar ainda que estão fora da competência, tanto da Justiça Militar da União como da Estadual, os crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil, haja vista a edição da Lei 9.299/1996 que aponta como competente o Tribunal do Júri.
No âmbito da União, a Justiça Militar é competente para processar e julgar os membros das Forças Armadas e também civis, sendo regulada pela Lei 8.457, de 04 de setembro de 1992.
Deixando de lado a questão da apreciação das questões disciplinares, quanto à Justiça Militar Estadual, nos termos do art. 125, § 4º, da Constituição Federal, cabe o julgamento dos militares do Estado nos crimes militares definidos no Código Penal Militar, singularmente pelo juiz de direito do juízo militar nos crimes em que a vítima primária seja civil e nos demais crimes militares perante o Conselho de Justiça, sob a presidência do juiz de direito, ressaltando que a condição da vítima para a fixação da competência leva em conta a vítima primária, não secundária (v.g., no crime de concussão a vítima primária é a Administração Pública e a secundária o civil a quem se exigiu vantagem indevida).
4.1. Critérios de fixação
Cuidando da competência material, três são os aspectos a serem observados na delimitação do exercício da jurisdição: a) em razão da matéria (ratione materiae); b) a qualidade da pessoa do réu (ratione personae); e c) o território (ratione loci).
Não sendo possível a um único juiz conhecer de todas as causas, emana determinação da Lei Maior, da legislação infraconstitucional e dos preceitos de organização judiciária, delimitando o exercício da função judicante, estabelecendo-se a competência pela natureza da infração.
Assim, “quando as regras legais sobre a competência ratione materiae emanam do legislador ordinário, a qualificação da infração usada pela lei reguladora da competência não traz maiores dificuldades para sua aplicação in abstracto. Bastará ao intérprete fazer a ligação entre a regra sobre competência e as rubricas da lei de direito penal material”.23
Em especial, quanto à Justiça Militar, leciona José Frederico Marques que:
“A justiça militar é das poucas jurisdições especiais cuja existência se justifica. Não se trata de um privilégio de pessoas, mas de organização decorrente, como lembra Astolpho Rezende, das condições especiais que ligam pessoas e atos de índole particular atinentes ao organismo militar, como também pela natureza das infrações disciplinares aptas a comprometer a ordem jurídica e a coesão dos corpos militares. Como diz um notável escritor italiano, trata-se de juízes especiais técnicos, juízes naturais do soldado, que sabem pesar os danos que à disciplina e ao serviço, ao bom estado militar podem custar as infrações e que a este dano proporcionam a adequada sanção”.24
Arremata o festejado autor que a Justiça Militar “não é um privilégio pessoal, nem uma prerrogativa de função ou seita, mas é ordenada sobre a essência do serviço militar, a qual não admite que a disciplina fique perturbada ou enfraquecida, que sejam subtraídas aos chefes militares a vigilância sobre as ordens, a subordinação e o juízo das valorações delas”.25
No que diz respeito à competência funcional, cabe pontuar que se trata de meio de delimitação da competência baseado em aspectos concernentes à função que exerce o agente acusado da prática de crime.
Com efeito, a matéria relativa à competência está inserta na Constituição Federal de 1988, onde se encontra estabelecida a competência dos Tribunais Superiores para processamento e julgamento das pessoas ali elencadas, determinando-se assim a competência ratione personae.
Na esteira dessa discussão, leciona Eduardo Espínola Filho que:
“Como deixamos exposto no 188, inc. I, “b”, a prerrogativa, que a função da pessoa sujeita a processo e julgamento, como responsável por qualquer infração penal, lhe dê, terá o efeito de, afastando a competência do foro comum, atribuir o conhecimento da causa a jurisdições de exceção. Nestes casos, firma-se, ‘ratione personae’, a competência do tribunal, que estende a sua jurisdição sobre todo o território do país, ou do Estado-membro da Federação, pouco importando o lugar onde se levar a efeito a infração”.26
Por outro lado, havendo choque entre o foro em razão da prerrogativa de função e o Júri, parece que a regra constitucional que elege o Júri deve prevalecer, mesmo porque o respeito à garantia do juiz natural certamente repercute ao mesmo tempo em que condiciona a atribuição da competência pela vinculação de causas, limitando o alcance dos dispositivos estabelecidos nas regras contidas na lei processual penal, limitações estas impostas pela necessidade inafastável de assegurar a presença no processo do órgão constitucionalmente competente, assim se assegurando a legitimidade do exercício da função jurisdicional”, ou, porque “a competência estabelecida em regras constitucionais é improrrogável, não comportando modificação de qualquer natureza, inexistindo qualquer dúvida de que o exercício da jurisdição sem adequação ao disposto naquelas regras acarreta a incompetência absoluta do órgão ou grupo de órgãos jurisdicionais que assim atue”.27
Necessário consignar que a competência funcional sempre pressupõe a existência da atribuição jurisdicional já delimitada pelos critérios da competência material em razão da relação de direito (ratione materiae) e do território (ratione loci).
Agora, analisemos a competência pelo lugar da infração. Não é demais salientarmos que a competência pelo local da infração é a regra geral adotada pelo Código de Processo Penal Militar, ou seja, preponderantemente, não se verificando elementos que ensejem a modificação da competência, a competência será delimitada pelo local da infração.
O art. 88 do Código de Processo Penal Militar traz que a competência será, de regra, determinada pelo lugar da infração, e, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. Tal regra é corroborada pelo art. 85, I, “a”, da legislação adjetiva penal militar.
Assim, a competência fixada pelo lugar da infração é a regra para a determinação do juiz a quem incumbe o exercício do poder jurisdicional no caso concreto, vez que firma a competência para o processo e julgamento da causa, pois é justamente neste foro onde há maior facilidade para coligir os elementos probatórios necessários à constatação da materialidade e à certeza da autoria, isso para não se falar que é o lugar onde o exemplo de repressão é exigido.
Segue, pois, a chamada Teoria do Resultado, enquanto o Código Penal Militar, ao definir o lugar do crime (art. 6°), estabelece que “considera-se praticado o fato, no lugar em que se desenvolveu a atividade criminosa, no todo ou em parte, e ainda que sob forma de participação, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado”, consagrando a Teoria da Ubiquidade.
No que toca à adoção da Teoria da Ubiquidade ou mista pela legislação penal militar, Guilherme de Souza Nucci pondera que
“Diversamente do previsto no processo penal comum, onde se adota a teoria do resultado, vale dizer, é competente para apurar a infração penal, aplicando a medida cabível ao seu agente, o foro onde se deu a consumação do delito, este Código acolhe a teoria da ubiquidade ou mista, que considera como lugar do crime tanto o da ação quanto o do resultado, indiferentemente”. 29
Não obstante o entendimento jurisprudencial, Cícero Robson Coimbra Neves demonstra ter visão diferente quando afirma que “aceitar a teoria da ubiquidade como regra de fixação do local da infração penal militar para fins de definição de competência significa partir da regra em si conflitiva nos crimes plurilocais, em que, de início, já serão competentes dois órgãos: o do local da conduta e o do local do resultado”.30
Tratando-se de crime praticado a bordo de navio ou embarcação sob o comando militar ou militarmente ocupado em porto nacional, nos lagos e rios fronteiriços ou em águas territoriais brasileiras, serão, nos dois primeiros casos, processados na Auditoria da Circunscrição Judiciária correspondente a cada um daqueles lugares, e, no último caso, na 1ª Auditoria da Marinha ex vi do artigo 89 do Código de Processo Penal Militar.
O artigo 90 do Código de Processo Penal Militar prescreve que os crimes cometidos a bordo de aeronave militar ou militarmente ocupada, dentro do espaço aéreo correspondente ao território nacional, serão processados pela Auditoria da Circunscrição em cujo território se verificar o pouso após o crime e, se este se efetuar em lugar remoto ou em tal distância que torne difíceis as diligências, a competência será da Auditoria da Circunscrição de onde houver partido a aeronave, salvo se presentes os mesmos óbices, caso em que a competência será da Auditoria mais próxima da primeira, se na Circunscrição houver mais de uma.
Quando o crime for cometido fora do território nacional (e de competência da Justiça Militar da União), o art. 91 do codex assinala que serão, de regra, processados em Auditoria da Capital da União.
Já para delitos praticados em parte no território nacional, segundo o previsto no art. 92 do Código de Processo Penal Militar, a competência do foro militar é determinada de acordo com as seguintes regras: (a) se, iniciada a execução em território estrangeiro, o crime se consumar no Brasil, será competente a Auditoria da Circunscrição em que o crime tenha produzido ou devia produzir o resultado; (b) se, iniciada a execução no território nacional, o crime se consumar fora dele, será competente a Auditoria da Circunscrição em que se houver praticado o último ato ou execução.
Quanto à competência pelo domicílio do réu, cumpre dizer que ela se dá sempre que for impossível determinar-se o local onde a infração foi cometida. Trata-se da chamada competência do foro supletivo.
A regra para determinação da competência é a do locus delicti commissi, salvo quando houver impossibilidade de se conhecer o lugar em que foi cometida a infração penal, oportunidade que se aplicam os arts. 85, I, “b”, e 93 do Código de Processo Penal Militar, impondo-se que a competência seja fixada pelo domicílio ou residência do acusado.
Noutra perspectiva, a competência do foro militar será determinada pela prevenção sempre que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com competência cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia. Esta é a regra do art. 94 do Código de Processo Penal Militar.
De acordo com o artigo 95 da lei processual castrense, a competência pela prevenção pode ocorrer: (a) quando incerto o lugar da infração, por ter sido praticado na divisa de duas ou mais jurisdições; (b) quando incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições; (c) quando se tratar de infração continuada ou permanente, praticada em território de duas ou mais jurisdições; (d) quando o acusado tiver mais de uma residência ou não tiver nenhuma, ou forem vários os acusados e com diferentes residências.31
Guilherme de Souza Nucci salienta que “a prevenção é sempre um critério residual, vale dizer, não havendo condições de determinar o juízo pelas regras usuais, como o lugar de infração ou o domicílio do réu, pois sempre existe a possibilidade de haver mais de um magistrado competente exercendo suas funções no mesmo local, utiliza-se a prevenção como subsídio”.32
Ainda sobre a fixação de competência, a lei processual penal militar traz no art. 96 que, para o militar, em situação de atividade ou assemelhado na mesma situação ou para o funcionário lotado em repartição militar, o lugar da infração, quando este não puder ser determinado, será o da unidade, navio, força ou órgão onde estiver servindo, não lhe sendo aplicável o critério da prevenção, salvo entre Auditorias da mesma sede e atendida a respectiva especialização.
Aclarando o texto legal, Guilherme de Souza Nucci traz que
“A competência do foro militar será determinada, de maneira geral, pelo lugar da infração, não sendo este específico, pela residência ou domicílio do acusado; se ainda não for possível, pela prevenção. Entretanto, há regra especial, consistente no lugar de serviço. Conforme se vê deste artigo, não sendo possível determinar o local da infração, em lugar de se utilizar do domicílio ou residência do acusado, bem como da prevenção, vale-se do seu local de serviço. Para isso, é preciso que o autor seja militar da ativa ou funcionário civil em repartição militar”.33
4.2. Competência originária
Como já assinalado, o art. 124 da Constituição Federal dispõe que à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei. O parágrafo único desse dispositivo constitucional normatiza que a lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.
A Lei Federal 8.457/1992, art. 6º, que organiza a Justiça Militar da União, aduz que compete ao Superior Tribunal Militar processar e julgar originariamente os oficiais generais das Forças Armadas nos crimes militares definidos em lei.
Nos termos do art. 125 da Constituição Federal, os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. Pari passu, o § 1º desse dispositivo traz que a competência dos Tribunais será definida na Constituição do Estado. Mais adiante, o § 3º do referido artigo constitucional dispõe que a lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar Estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de Direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes. Já o § 4º normatiza que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. Por fim, o § 5º aduz que compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares.
O art. 81 da Constituição do Estado de São Paulo, por exemplo, prevê que o Tribunal de Justiça Militar paulista tem competência originária para processar e julgar o Comandante Geral da Polícia Militar e o Chefe da Casa Militar nos crimes militares.
A Constituição de Minas Gerais não concede ao Tribunal de Justiça Militar daquele Estado competência para julgar originariamente as ações criminais propostas em face de oficiais coronéis. Nessa linha, o Regimento Interno do Tribunal Militar não pode fixar foro especial por prerrogativa de função.
Assim como os exemplos paulista e mineiro, o Tribunal Militar do Estado Gaúcho é órgão de segundo grau de jurisdição da Justiça Militar Estadual.
Segundo o art. 234 da Lei Estadual 7.356/1980, que dispõe sobre o Código de Organização Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul, compete ao Tribunal Militar daquele Estado processar e julgar originariamente os coronéis da Brigada Militar, nos crimes militares.
4.3. O julgamento de civis pela Justiça Militar da União
No julgamento do Habeas Corpus 112.936/RJ, o Supremo Tribunal Federal, por meio do voto do Ministro Celso de Mello, bem abordou a questão:
“(...) A tentativa de o Poder Público pretender sujeitar, arbitrariamente, a Tribunais castrenses, em tempo de paz, réus civis, fazendo instaurar, contra eles, perante órgãos da Justiça Militar da União, fora das estritas hipóteses legais, procedimentos de persecução penal, por suposta prática de crime militar, representa clara violação ao princípio constitucional do juiz natural (CF, art. 5º, LIII). Não se pode deixar de acentuar, bem por isso, o caráter anômalo da submissão de civis, notadamente em tempo de paz, à jurisdição dos Tribunais e órgãos integrantes da Justiça Militar da União, por suposta prática de crime militar, especialmente se se tiver em consideração que tal situação – porque revestida de excepcionalidade – só se legitima se e quando configuradas, quanto a réus civis, as hipóteses delineadas em sede legal e cujo reconhecimento tem merecido, do Supremo Tribunal Federal, estrita interpretação. Esta Suprema Corte tem entendido, em casos idênticos ao ora em análise, que não se tem por configurada a competência da Justiça Militar da União, em tempo de paz, tratando-se de réus civis, se a ação eventualmente delituosa, por eles praticada, não afetar, de modo real ou potencial, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares, que constituem, em essência, os bens jurídicos penalmente tutelados. Mostra-se grave, por isso mesmo, a instauração, em tempo de paz, de ação penal militar contra civil, com o objetivo de submetê-lo, fora dos casos autorizados em lei, a julgamento perante a Justiça Militar da União! Todas essas considerações revelam-se de indiscutível importância em face do caráter de fundamentalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, o princípio do juiz natural. (…) Impende registrar, por necessário, que esta Suprema Corte, defrontando-se com situação idêntica à exposta nesta sede processual, por não considerar a atividade de policiamento ostensivo função de natureza militar, reconheceu a incompetência absoluta da Justiça Castrense para processar e julgar civis que, em tempo de paz, tivessem alegadamente cometido fatos que, embora em tese delituosos, não se subsumem à descrição abstrata dos elementos que compõem a estrutura jurídica dos tipos penais militares” (CC 7.030/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Mello – HC 68.928/PA, Rel. Min. Néri da Silveira – HC 101.471/PA, Rel. Ministro Ayres Britto, v.g) ”.
Nesse sentido, aliás, sinalizam as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos:34
“(...) a jurisdição militar não é naturalmente aplicada a civis que carecem de funções militares e que por isso não podem incorrer em condutas contrárias a deveres funcionais deste caráter. Quando a justiça militar assume competência sobre um assunto que deve conhecer a justiça ordinária, se vê afetado o direito ao juiz natural e, por conseguinte, ao devido processo legal, o qual, por sua vez, encontra-se intimamente ligado ao próprio direito de acesso à justiça”.35
E mais:
“Em um caso recente, a Corte estabeleceu que em um Estado Democrático de Direito a jurisdição penal militar tem de ter um alcance restrito e excepcional e estar voltada para a proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados com as funções que a lei indica e as forças militares. Assim, deve estar incluído do âmbito da jurisdição militar o julgamento de civis e só se deve julgar os militares pelas práticas de delitos ou faltas que por sua própria natureza atentem contra bens jurídicos próprios da ordem militar (nota al pie n. 59: Caso Durand y Ugarte, supra nota 45, p. 117)”.36
De há muito, já acenava Montesquieu ao mostrar sua preocupação de que indivíduos ligados a outra esfera de poder que não o Estado-Juiz pudessem exercer a jurisdição:
“Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor”.37
Não diverge do quanto sustentado por Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli ao considerarem que:
“O embasamento normativo do direito penal militar brasileiro é o código penal militar de 1969, cujas normas são aplicáveis aos militares do Estado. Dispositivos contidos no código penal militar, quando envolvem civis, apresentam aspectos claramente inconstitucionais, mormente quanto às regras de processo, vez que os tribunais militares não podem ser considerados independentes, em face da dependência hierárquica que os vincula ao Poder Executivo. Seu funcionamento pode ser justificado em tempo de guerra, na exata medida que o exija a necessidade, mas de maneira alguma deve ser admitida em tempo de paz, quando não existe necessidade de subtrair ao Poder judiciário independente o julgamento de fatos que, hoje, estão afetos a tribunais militares”.38
No mesmo diapasão, é a fala de Luiz Flávio Gomes para quem “a existência de tribunais militares, por si só, não fere a Convenção Americana, mas não devem ficar sujeitos à sua jurisdição os civis. De outro lado, devem julgar apenas os delitos que afetam bens jurídicos próprios da ordem militar.
Em sede jurisprudencial, indica-se, a título exemplificativo, o ementário de Corte Suprema no sentido da inexistência de crime militar:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA MILITAR. CRIME MILITAR NÃO CARACTERIZADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL COMUM. FALSIDADE DE DOCUMENTO E USO DE DOCUMENTO FALSO (ARTS. 311 E 315 DO CÓDIGO PENAL MILITAR). CERTIFICADO DE SEGURANÇA DA NAVEGAÇÃO (CSN). PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA” (STF, HC 101.471/PA, rel. Min. Carlos Britto, j. 26.04.2011).
Na mesma vereda:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA MILITAR. CRIME MILITAR NÃO CARACTERIZADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM FEDERAL. CRIME DE DANO AO PATRIMÔNIO FEDERAL. PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA” (STF, HABEAS CORPUS 105.348, rel. Min. Carlos Britto, j. 19.10.2010).
É também da lavra do Ministro Carlos Ayres Britto o que restou assentado:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIMES DE HOMICÍDIO E LESÃO CORPORAL GRAVE CONTRA MILITAR EM OPERAÇÃO DE TRANSPORTE DE FARDAMENTO DO EXÉRCITO. COLISÃO DO VEÍCULO DO PACIENTE COM A VIATURA MILITAR. INTERPRETAÇÃO ESTRITA DA FUNÇÃO DE NATUREZA MILITAR. EXCEPCIONALIDADE DA JUSTIÇA CASTRENSE PARA O JULGAMENTO DE CIVIS EM TEMPO DE PAZ” (STF, HC 86.216, rel. Min. Carlos Britto, j. 19.02.2008).
Veja-se outro precedente da mesma linha:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. “PICHAÇÃO DE EDIFÍCIO RESIDENCIAL PERTENCENTE AO EXÉRCITO BRASILEIRO. AGENTES CIVIS. NÃO OCORRÊNCIA DE CRIME MILITAR. EXCEPCIONALIDADE DA JUSTIÇA CASTRENSE PARA O JULGAMENTO DE CIVIS, EM TEMPO DE PAZ. ORDEM CONCEDIDA” (STF, HC 100.230, rel. Min. Carlos Britto, j. 17.08.2010);
Não é outro o entendimento do Ministro Sydney Sanches:
“EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. JURISDIÇÃO. COMPETÊNCIA. COMPETE À JUSTIÇA COMUM – E NÃO À MILITAR – O PROCESSO E JULGAMENTO POR CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO IMPUTADO A CIVIL (MILITAR DA RESERVA), AINDA QUE OCORRIDO EM LOCAL SOB A ADMINISTRAÇÃO MILITAR E COM VÍTIMA MILITAR DA ATIVA. INTERPRETAÇÃO DO ART. 9º, II E III, DO CÓDIGO PENAL MILITAR. PRECEDENTES DO STF. HABEAS CORPUS DEFERIDO PARA A ANULAÇÃO DO PROCESSO-CRIME MILITAR, DESDE A DENÚNCIA, INCLUSIVE, E REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA COMUM DO ESTADO DO PERNANBUCO. DECISÃO UNÂNIME” (STF, HC 81.161, rel. Min. Sydney Sanches, j. 30.10.2001).
Finalmente, o Habeas Corpus nº 1.963, da Relatoria do Ministro Celso de Mello, assim lavrado:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIMES DE LESÕES CORPORAIS CULPOSAS CONTRA MILITAR EM MANOBRA. INOCORRÊNCIA DE CRIME MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. POSTULADO DO JUIZ NATURAL. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. INOCORRÊNCIA. DECADÊNCIA. CAUSA EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE DO AGENTE. PEDIDO DEFERIDO. EXCEPCIONALIDADE DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO, EM TEMPO DE PAZ, TRATANDO-SE DE RÉU CIVIL” (STF, HC 81.963, rel. Min, Celso de Mello, j. 18.06.2002).
Não se pode ignorar que o país elegeu a solução pacífica dos conflitos e a defesa da paz como princípios que há tempos regem o Estado brasileiro no contexto internacional (art. 4º, incisos VI e VII, da Constituição Federal),39 tanto que, apesar de coadjuvante nas duas grandes guerras mundiais e o envio de tropas em missões de paz, desde que instalada a República, o território brasileiro nunca foi palco de operações militares, tampouco o país se envolveu em guerra de conquista.
Todavia, apesar da aversão à guerra fazer parte da identidade internacional do Brasil, todos os cidadãos brasileiros são potencialmente militares (art. 3º, § 1º, alínea “a”, inciso IV, e art. 4º, inciso I, alínea “b”, ambos do Estatuto dos Militares), considerados reserva das Forças Armadas, sujeitos à convocação e mobilização, destacado o status das Polícias Militares de Forças Auxiliares do Exército (art. 144, § 6º, da Constituição Federal), restando à Justiça Militar da União, conforme entendimento que prevalece, mesmo em tempo de paz, competência para julgar civis acusados da prática de crime militar (art. 9º, inciso III, alíneas “a” a “d”, do Código Penal Militar), com o que não se concorda.
5. Conflitos de competência
Inicialmente, cabe assinalar que o Código de Processo Penal Militar emprega o nomem juris “conflito de competência” (arts. 111 e ss.), enquanto o Código de Processo Penal traz a nomenclatura “conflito de jurisdição” (arts. 113 e ss.).
Trata-se, no entanto, de questão meramente semântica, pois como adverte José Frederico Marques “na terminologia da legislação pátria, a expressão usada para se resolverem conflitos de competência é também a de conflito de jurisdição”. 40
Nesse orbe, tendo em vista os inúmeros órgãos jurisdicionais, pode ocorrer de dois ou mais juízes ou órgãos jurisdicionais reconheçam simultaneamente a competência para julgar determinado processo ou mesmo rejeitem, declinem, enfim recusem a competência para tanto.
Explica Eduardo Espínola Filho que “o conflito de jurisdição existe, quando, em qualquer fase do processo, um ou mais juízes, contemporaneamente, tomam ou recusam tomar conhecimento do mesmo fato delituoso ou de fatos delituosos que, por conexão ou continência, hão de se apurar conjuntamente”.41
Como dito, o conflito de competência é tratado nos arts. 111 e 121 da lei processual castrense.
O art. 111 estabelece que as questões atinentes à competência resolver-se-ão assim pela exceção própria como pelo conflito positivo ou negativo.
Sobre a legitimidade para se suscitar o conflito, a norma processual a concede ao acusado, ao Ministério Público e à própria autoridade judiciária ex officio (CPPM, art. 113).
O Código de Processo Penal Militar dispõe no art. 114 que o conflito será suscitado perante o Superior Tribunal Militar pelos auditores ou os Conselhos de Justiça, sob a forma de representação, e pelas partes interessadas, sob a forma de requerimento, fundamentados e acompanhados dos documentos comprobatórios. Quando negativo o conflito, poderá ser suscitado nos próprios autos do processo.
O mesmo codex traz no art. 120 a figura da avocatória, em que o Superior Tribunal Militar restabelecerá sua competência sempre que invadida por juiz inferior.
Sobre essa figura processual, Guilherme de Souza Nucci pondera que a avocatória “é o instrumento processual utilizado por tribunal superior para determinar o encaminhamento a si de processo sujeito à sua competência. Cuida-se de reafirmação da competência de Corte em face de juízo ou tribunal inferior”.42
Na Justiça Militar Estadual, especialmente em São Paulo, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça Militar traz, em seus arts. 99 e ss., as disposições sobre o conflito de competência.
Assim, o art. 99 do RITJMSP disciplina que o Pleno, mediante representação ao Superior Tribunal de Justiça, suscitará os conflitos de competência com outro Tribunal e com os juízes de direito da primeira instância a ele não vinculados.
O parágrafo único desse dispositivo regimental ainda coloca que os juízes (inclusive os Conselhos de Justiça), sob a forma de representação, o Ministério Público e a parte interessada, por via de petição, darão parte escrita e circunstanciada do conflito, dirigida ao Presidente do Tribunal, expondo as razões da divergência e juntando os documentos necessários à prova do conflito.
Tratando-se de conflito de competência em sede de primeiro grau, os conflitos de competência serão suscitados por representação dos juízes de direito, dos Conselhos de Justiça, ou a requerimento das partes interessadas, devendo ser julgados pela Câmara (RITJMSP, art.101).
Após os trâmites processuais, no que incluem manifestações dos juízes em conflito e da Procuradoria de Justiça, os autos serão julgados pelo Tribunal Pleno, que ao decidir o conflito, declarará qual é o juiz competente para a matéria, podendo reconhecer a competência de outro juízo que não o suscitante ou o suscitado, e se pronunciará, também, sobre a validade dos atos do juiz que oficiou sem competência legal (RITJMSP, art. 104; CPPM, arts. 116, 117 e 118).
Em orbe de segundo grau de jurisdição, o RITJMSP preceitua que a parte, o Ministério Público ou qualquer juiz que deva proferir decisão no feito podem provocar manifestação, conforme o caso, do Pleno ou da Câmara sobre a competência da Justiça Militar para tratar de questão submetida à apreciação de outro juízo (art. 106).
Uma vez reconhecendo a existência do conflito, o Presidente do Tribunal encaminhará os autos ao Superior Tribunal de Justiça (RITJMSP, art. 100). A esse respeito, o art. 105, I, “d”, da Constituição Federal normatiza que compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente, os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, "o", bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos.
Como exposto, o art. 102, I, “o”, da Carta Magna dispõe que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar originariamente os conflitos de competência entre o Superior Tribunal de Justiça e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou entre estes e qualquer outro tribunal.
E o Código de Processo Penal Militar não diverge da Constituição Federal, uma vez que em seu art. 121 traz que a decisão de conflito entre a autoridade judiciária da Justiça Militar e a da Justiça Comum será atribuída ao Supremo Tribunal Federal.
Segundo o art. 115 do Código de Processo Penal Militar, tratando-se de conflito positivo, o relator do feito poderá ordenar, desde logo, que se suspenda o andamento do processo até a decisão final.
Por fim, o art. 119 do Código de Processo Penal Militar (reproduzido pelo art. 104, § 4º, do RITJMSP), impõe que não cabe recurso da decisão do conflito de competência.
De acordo com o art. 112, inciso I, alínea “a”, do Código de Processo Penal Militar, tem-se conflito positivo de competência quando duas ou mais autoridades judiciárias entendem, ao mesmo tempo, que lhes cabe conhecer do processo.
Segundo José Frederico Marques, “no conflito positivo de jurisdição, os órgãos judiciários reivindicam sua competência”.43
Hélio Tornaghi aponta que ocorre o conflito positivo “quando um ou mais juízes, pertencentes à mesma jurisdição, contemporaneamente, se dão por competentes para a prática dos mesmos atos”.44
Guilherme de Souza Nucci entende haver conflito positivo de competência quando
“Duas ou mais autoridades judiciárias consideram-se, ao mesmo tempo, competentes para processar determinado caso. Esta modalidade de conflito é mais rara do que a negativo, pois é preciso estar o juízo em contato com o feito para avaliá-lo como de sua competência. Diante disso, sem provocação de qualquer das partes, torna-se difícil que uma Auditoria tome conhecimento de que a outra conhece e processa determinado caso, reputando-o de sua competência. Mesmo que ocorra, há forte tendência em cessar o conflito quando um juízo conhece as razões jurídicas do outro para manter o processo sob sua responsabilidade. Mas, em carácter excepcional, ambos podem insistir no mesmo caso, gerando o conflito positivo de competência”. 45
Por outro lado, nos termos do art. 112, inciso I, alínea “b”, da lei processual militar, dá-se conflito negativo de competência quando cada uma de duas ou mais autoridades judiciárias entender, ao mesmo tempo, que cabe à outra conhecer do mesmo processo.
Para José Frederico Marques, “no conflito negativo de jurisdição, que é a renegação da competência, como diz Jorge Americano, ambas as autoridades judiciárias se consideram incompetentes para conhecerem do mesmo fato criminoso”. 46
Hélio Tornaghi assinala que no conflito negativo “um ou mais juízes ou cada um deles entende que o competente é um dos outros (juízes)”. 47
Ao tratar do conflito negativo de competência, Guilherme de Souza Nucci expõe que
“É hipótese mais comum que o positivo, pois significa que o caso chegou às mãos de um determinado juízo, passando por sua criteriosa análise; após, houve o entendimento de se tratar de feito da competência de outra Auditoria, para onde o remete. Muitas vezes, resolve-se nessa fase, com a aceitação da competência pelo juízo receptor. Entretanto, se este o refutar, nasce o conflito negativo de competência. Quem deve suscitá-lo é o segundo juízo, vale dizer, aquele que recebeu o feito, já recusado pelo anterior. Não é viável que devolva novamente ao primeiro para que este suscite o conflito; afinal ele não o criou, mas somente recusou a sua competência. Nasce, automaticamente, o conflito quando o receptor do feito nega a sua competência”.48
5.1. A Súmula 297 do Supremo Tribunal Federal
Conquanto alguns julgados apontem que se mostra superada a Súmula 297 do Supremo Tribunal Federal,49 decisões outras existem em sentido contrário, restringindo a competência da Justiça Militar.
Com relação se vigente ou não a Súmula 297 do Supremo Tribunal Federal, não obstante a posição de que está superado o referido entendimento de há muito sumulado (vide RHC 56.049/SP - STF), ocasião em que se sugeriu a reformulação do citado verbete, por outro lado, é sabido que não houve sua revogação, cancelamento ou, até mesmo, revisão, continuando ela a servir de norte ao Poder Judiciário. Mais do que isso, voltou, recentemente, a ser aplicada.
Assim, cabe referir, no tocante à inteligência da Súmula 297 do Pretório Excelso, que o Superior Tribunal Militar já pontificou que os crimes tipificados no Código Penal Militar, em face de membro das Forças Armadas quando este está em função de natureza civil, tem competência a Justiça Comum, e não a Justiça Militar:
“Desacato – serviço externo de policiamento – competência. Civil acusado de desacato a soldados do exército em serviço externo de policiamento local e de trânsito. Apelo colimando, preliminarmente, anulação do processo por incompetência da justiça militar federal e, no mérito, pela reforma da sentença condenatória por atipicidade da conduta. Comprovado que os militares encontravam-se exercendo atividade de policiamento externo e de trânsito quando, ao admoestar civil em razão de estacionamento irregular do seu automóvel, foram desacatados. Atividades de policiamento externo de trânsito exercidas pelos militares do exército não podem ser consideradas como função de natureza militar por não se ajustarem à destinação constitucional das forças armadas. fato típico imputado não caracteriza crime de competência da justiça militar da união por não se amoldar às hipóteses do artigo 9º do CPM. Precedentes do excelso pretório. Acolhida a preliminar para, anulando-se o feito ab initio, determinar a remessa dos autos à justiça comum do Estado do Rio de Janeiro” (STM, Apelação 48.029-3/RJ, rel. Min. Tenente Brigadeiro-do-Ar Carlos de Almeida Baptista, j. 30.04.1998).
É, ainda, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
“RHC. Desacato a policial militar. Patrulhamento de trânsito. Função civil. Justiça militar. Incompetência. Nulidade do processo. Conforme jurisprudência desta corte e do colendo STF, não pode ser considerada como função de natureza militar, para a configuração de crime militar, nos termos do art. 9º, inciso III, ‘d’ e 299, ambos do CPM, atividade de policiamento e fiscalização de trânsito. Nulidade do processo a partir da denúncia, inclusive, ante a flagrante incompetência da justiça militar para julgar o feito. Remessa dos autos à justiça comum. Recurso provido”. (STJ, RHC 11.376/SP, 5ª Turma, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 02.08.2001).
Cabe, ainda, menção ao seguinte aresto:
“Conflito positivo de competência. Justiça comum estadual e justiça militar. Lesão corporal, ameaça e desacato. Crimes cometidos por policial reformado contra policial militar no exercício de policiamento ostensivo. Função policial civil. Incidência da súmula n.º 297 do STF. Precedentes do STJ. Competência da justiça comum estadual. 1. A conduta delituosa foi realizada em face de um policial militar que estava desempenhando atividade de policiamento ostensivo, função tipicamente policial civil. Destarte, incide sobre a espécie a súmula n. º 297 do STF, in verbis: 'oficiais e praças das milícias dos estados no exercício de função policial civil não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a justiça comum para julgar os crimes cometidos por ou contra eles'. Precedentes do STJ. 2. Conflito conhecido para declarar competente o juízo comum estadual, o suscitado” (STJ, C.C 34.028/SP, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14.05.2003).
Finalmente:
“Processo penal. Conflito positivo de competência. Justiça comum estadual e justiça militar. Briga conjugal. Tentativa de homicídio. Crime cometido por PM, fora de suas funções (folga), contra outro PM no exercício de atividade de manutenção da ordem. Atividade inerente a polícia civil. Súmula 297/STF. Competência da justiça comum estadual. 1. O fato de a vítima ser policial militar, em serviço, não atrai a competência da justiça castrense, porquanto que estava em atividade inerente à polícia civil estadual, ou seja, na manutenção da ordem pública, atendendo a chamado de agressão entre cônjuges, sendo um deles o autor dos disparos. incidência da súmula 297/STF. 2. Precedentes (STF, Pleno, HC 72.022/PR e STJ, 3ª Seção, C.C n. º 34.028/SP). 3. Conflito conhecido e provido para declarar competente o d. juízo de direito de Pedreira/SP, ora suscitado” (STJ, C.C. 27.596/SP, 3ª seção, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 24.03.2004).
Desse modo, em sendo inegável a função policial civil da atividade desenvolvida pela Polícia Militar, entendendo que a distinção entre polícias civis e militares se dá porque a uma cabe a atividade de investigação e a outra o policiamento ostensivo e repressivo, entendendo o legislador constituinte que uma dessas instituições deveria seguir modelo em que mais presentes a hierarquia e a disciplina, tem-se que a Súmula 297 do Supremo Tribunal Federal deve, sim, irradiar seus efeitos às instâncias inferiores e não, como se cogitou, ser revista.
6. A influência do bem-jurídico na análise da competência
Se é certo que a tutela dos bens jurídicos pelo Direito Penal sofre influências éticas, históricas, políticas e sociais, ou seja, é variável conforme o tempo, ou, em outras palavras, como outrora assinalou Recaséns Siches, o “direito como produto de processos sociais”,50 evidente que o Direito Penal Militar não fica disso à margem.
Até porque, conforme bem apontado por Claus Wilhelm Canaris, “uma determinada ordem jurídica positiva não é uma ratio scripta, mas sim um conjunto historicamente formado”.51
Nesse passo, como dito, atualmente é impossível a interpretação do Código Penal Militar e também do Código de Processo Penal Militar com a visão restrita dos tempos do regime de exceção de quando foram decretados por uma Junta Militar, inclusive sob o pálio do Ato Institucional 05.52
A esse respeito, cumpre destacar que no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, que afastou a validade da Lei 5.250/1967, a chamada Lei de Imprensa, destacou-se a necessidade de se afastar do ordenamento jurídico pátrio os escombros do período autoritário, contraditórios com a atual ordem democrática de direito. 53
Destarte, se a Lei 5.250/1967, fruto da vontade popular, discutida e trazida à luz pelos representantes do povo no Congresso Nacional foi tida por incompatível com o direito geral de liberdade, mais restrições ainda hão de cair sobre o Código Penal Militar e sobre o Código de Processo Penal Militar, pois diferentemente daquela, não são leis, mas sim Decretos-leis impostos por uma Junta Militar.
Ainda dentro do contexto histórico e social, não se pode deixar de lado que quando da decretação do Código Penal Militar e do Código de Processo Penal Militar, além de o Brasil estar sob um regime de exceção, num contexto marcado pela polaridade da Guerra Fria, fazia pouco mais de duas décadas que o mundo se via livre da 2ª Guerra Mundial (1939-1945).
Ainda nessa ótica, para se compreender aquele momento jurídico e político-social, vale lembrar também que desde a Proclamação da República, o Brasil tinha vivido poucos momentos de normalidade institucional, com muitos outros de verdadeira asfixia democrática e inconstância jurídica. Basta ver que após a Proclamação da República, em 1889, até 1969, ou seja, em 70 anos, foram promulgadas cinco Constituições Federais, a saber, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, além da Emenda Constitucional 1, de 1969.
Com efeito, além dos militares que ascenderam à Chefia de Governo e de Estado logo após a queda do Império (Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto), caminhou-se por tortuosas sendas onde, por exemplo, vivenciou-se episódios como Guerra de Canudos, Guerra do Contestado, Revolta da Armada, Revolta da Chibata, Revolta dos Dezoito do Forte, Levante Integralista, Intentona Comunista, Revoluções de 1930 e 1932, Estado Novo etc.
Foi esse quadro histórico, aliás, que nos legou uma Polícia Militar, pois ao contrário do que muitos pensam, a existência de uma polícia militarizada não nasce com o Golpe de 1964, mas muito antes, com a Força Pública. Nesse sentido, conforme apontado por Jorge da Silva Giulian, o embrião da Polícia Militar, a extinta Força Pública, tinha por finalidade, “agir como força de defesa estadual (semelhante às missões atribuídas às Forças Armadas), atuando em guerras (Contestado, Revolução de 1930, 1932, a Intentona Comunista em 1935, etc...) tendo como missão principal a não subversão dos regimes e poderes constituídos”.54
Evidente, pois, o terreno movediço que se apoiavam as ordens jurídica e político-social que, em certa medida, até poderiam justificar um Direito Penal Militar mais abrangente.
Atualmente, entretanto, vive-se outros ares, com uma Constituição Federal que prestigia valores e princípios de caráter democráticos e com inexorável compromisso com a Dignidade da Pessoa Humana – com a prevalência dos Direitos Humanos - a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, a não intervenção, entre outros.
Nos dias atuais, por exemplo, é inconcebível a visão belicosa e totalmente divorciada dos Direito Humanos que, à guisa de exemplo, o então Comandante-Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo tinha nos idos dos anos 1970:
“A Polícia Militar vive em eterna guerra. A guerra de rua testa o Comandante e sua liderança. A Polícia Militar só será eficiente quando os seus Oficiais forem líderes e não apenas chefes. Com estes líderes é que a tropa irá para a luta de rua. No dia a dia enfrentamos o ‘esgoto’ da sociedade. Só com homens bem comandados é que poderemos canalizar o ‘excremento’ da sociedade para os devidos locais”.55
A seguir nessa linha, consegue-se extrair certa razão do senso comum quando este vincula as questões militares ao estado de beligerância e situações de anormalidade institucional. Afinal, qual a razão, por exemplo, de se aplicar o Direito Penal Militar a civis em tempos de paz?
Tirando as situações de anormalidade, restam às Polícias Militares, hodiernamente, a função de repressão ao crime, de natureza eminentemente civil, seguindo-se, portanto, o quanto sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, em sua Súmula 297, que convém mais uma vez repetir, no sentido que:
“OFICIAIS E PRAÇAS DAS MILÍCIAS DOS ESTADOS, NO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO POLICIAL CIVIL, NÃO SÃO CONSIDERADOS MILITARES PARA EFEITOS PENAIS, SENDO COMPETENTE A JUSTIÇA COMUM PARA JULGAR OS CRIMES COMETIDOS POR OU CONTRA ELES”.
Portanto, se é imprescindível entender o direito como produto de processos e progressos sociais, será que determinados comportamentos tido por criminosos em tempos idos podem atualmente ser vistos como atentatórios à ordem militar, a afetar bens jurídicos pertinentes ao serviço, à administração, à disciplina e à hierarquia, de modo que justifiquem a atuação do ramo que deve ser a ultima ratio?
Onde, por exemplo, uma briga de casal, mesmo que termine em vias de fato ou lesões corporais, cujo marido e mulher são militares, afeta a hierarquia e disciplina, a ponto de necessitar a intervenção do Direito Penal Militar a submetê-los à Justiça Militar? Não bastaria o Direito Civil ou, em casos extremos, mais adequada a legislação penal extravagante (Lei Federal 11.340/2006)56?
Indo mais adiante, fazendo valer o caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal, entende-se que em muitos outros casos, hoje considerados crimes do ponto de vista militar, poderiam ter como resposta apenas a intervenção do Direito Administrativo, com punições disciplinares, demissão ou expulsão do infrator, por exemplo.
Isso vai ao encontro do quanto ponderado por Jorge de Figueiredo Dias quando este traz que “o actual movimento em favor da 'eticização e purificação do direito penal', ao pretender que este só intervenha nos casos de insuportável violação de bens fundamentais da comunidade é, sem dúvida, também consequência da exigência processual de que os tribunais penais não sejam submersos por uma multidão de infracções de duvidoso relevo ético-social”.57
Ora, se o direito aplicado na Justiça Militar tem de “ser um direito de tutela dos interesses socialmente relevantes ligados à função militar no âmbito de uma comunidade que decidiu ter Forças Armadas” consoante a visão de Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto58, atualmente se faz necessária a avaliação de quais bens jurídicos devam ser considerados como objeto de tutela penal.
E aí o mais correto seria limitar aos bens jurídicos ligados à defesa da pátria, garantia da independência, salvaguarda da soberania nacional ou, no plano das relações internacionais, que atentem contra os princípios da República da defesa da paz, da solução pacífica dos conflitos e da não intervenção.
A análise do bem jurídico-penal militar, e sua influência na fixação da competência da Justiça Militar, deve, portanto, estar atrelada à expectativa social, evolutiva e adequada às condições de tempo e espaço, e, por conseguinte, aos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade do direito penal enquanto ultima ratio, o que significa dizer um sistema flexível e aberto, que depende de um sistema de valores sociais de forma ampla, ao contrário de um sistema anacrônico, sectário, de interpretação rígida, pautado por interpretação literal e à margem da Constituição Federal como ocorre atualmente, que atenda, portanto, não às expectativas da casta militar, mas, isto sim, de toda a sociedade.
Disso se conclui que não se pode admitir que um civil tenha por juiz um militar, mormente quando, convém repetir, inexistente uma conjuntura que não se vislumbre qualquer risco à defesa da pátria, à garantia da independência, à salvaguarda da soberania nacional ou que atentem contra a defesa da paz mundial.
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