Flagrante por intuição

 

Flagrante por intuição


 


Por Rodrigo de Oliveira Vieira

O tema é recorrente, muito tem sido escrito e debatido a seu respeito, mas sempre é oportuno que alguns pontos de vista sem enfatizados, até como forma de modestamente enriquecer a discussão acerca do que se tem denominado “flagrante por intuição”, ou seja, aquela hipótese em que agentes policiais, desprovidos de mandado judicial, e sem a posse de informações seguras sobre situação de flagrante delito, ingressam em imóvel privado e, aí estando, se deparam com situação que, em tese, legitimaria a prisão em flagrante.

Flagrante e intuição

À partida, cumpre destacar que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem, como um de seus fundamentos reitores, o primado da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, inciso III, da Constituição Federal). Uma das garantias fundamentais que derivam desse postulado, é o da indevassabilidade dos lares, previsto no art. 5.º, inciso XI, da Carta Magna:

A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

A regra, como se percebe, é a impossibilidade do ingresso em casa alheia sem consentimento válido do morador, exceto diante das hipóteses que autorizam a sua mitigação. Portanto, o que é excepcional deve assim ser tratado e visualizado, e não como a praxe.

No âmbito da jurisdição criminal, a autorização para ingresso em imóvel alheio é balizada pelo Código de Processo Penal, o qual traz disciplina que estabelece condições, forma e limitações à expedição e ao cumprimento de um mandado de busca e apreensão.

De ver-se que a diligência de busca domiciliar tem como pressuposto a existência de fundadas razões que a autorizem, como se depreende do disposto no art. 240§ 1.º, do CPP.

Ainda que essas tais fundadas razões sejam um conceito jurídico indeterminado, certo que, trocando em miúdos, pode-se afirmar que, para autorizar o ingresso forçado em imóvel alheio, é indeclinável que o magistrado o faça com fundamento em elementos idôneos que configurem um quadro de verossimilhança, indicando como séria probabilidade a de que o objeto ou coisa que se pretende apreender esteja no interior do imóvel em que se almeja ingressar.

Em síntese, para deferir a busca e apreensão, a autoridade judiciária está vinculada aos elementos que lhe sejam apresentados pela autoridade postulante da medida, Delegado de Polícia ou membro do Ministério Público, não podendo autorizar tal diligência com base em mera suspeita ou com suporte em informações vagas, genéricas e imprecisas.

Deve ter sempre presente, o juiz, que a busca e apreensão importa em mitigação pontual de uma garantia fundamental estabelecida pela Constituição da República.

Aliás, veja-se, ainda mais, que, para expedir um mandado de busca e apreensão, o magistrado deve verificar não apenas a presença de fundadas razões a autorizarem a medida, mas deverá fazer constar no respectivo mandado, o mais precisamente possível, o endereço a ser objeto da diligência e o nome do respectivo morador, além de mencionar o motivo e os fins da diligência, conforme consta do art. 243, incisos I e II, do CPP.

Portanto, uma diligência de ingresso em casa alheia sem estar previamente autorizada por ordem judicial, deve, também, se cercar de algumas cautelas. (Para o conceito de “casa”, sugere-se a leitura do disposto no art. 150, § 4.º, do Código Penal.)

Se uma autoridade judiciária, com toda a independência e as garantias de que dispõe para exercer o mister jurisdicional, está submetida a condicionantes para autorizar o ingresso em imóvel alheio, não seriam outras autoridades públicas, que não contam com as mesmas garantias, que não se submeteriam a certos limites para a execução de medida que significa o afastamento pontual de garantia assegurada pela Constituição.

Muito tem sido sustentado no sentido de que a verificação de situação de flagrante delito após o ingresso em casa alheia sempre legitimaria a medida.

Não mesmo.

É preciso que, através de elementos palpáveis e demonstráveis posteriormente, a situação de flagrante se apresente previamente evidente. Vale dizer, as mesmas fundadas razões que fundamentam uma decisão judicial de busca e apreensão, devem estar presentes previamente à medida executada sem autorização judicial, possibilitando, assim, o controle posterior.

Intuição policial

Assim, exige-se, ao ingresso forçado em imóvel alheio, que a autoridade executora da medida esteja amparada em uma justificativa prévia, possibilitando o posterior escrutínio judicial, salvaguardando os lares e os locais de trabalho de ingerências arbitrárias e abusivas, não se afigurando suficiente que se alegue a mera intuição policial para a realização da diligência.

Não é suficiente que se alegue se cuidar de “crime permanente”. É indeclinável que os elementos previamente perceptíveis assim o indicassem. Não se admite que se ingresse em imóvel alheio, sem que se saiba que há situação de flagrante delito, para, só depois, eventualmente presente o quadro flagrancial, tenha-se por legítima a ação policial. Ela deve ser legítima do início ao fim.

O Pleno do Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de decidir:

Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5XI, da CF) e deixaria de proteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados” (STF, Tribunal Pleno, HC 126292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17.02.2016) (grifou-se).

Mera intuição

Muito comum em flagrantes por tráfico de drogas, as “pedaladas” em portas de residências, via de regra em bairros de periferia (os que traficam drogas de helicópteros não costumam ter as portas de suas casas abertas a pontapés), geralmente não estão embasadas em fundadas razões, com elementos concretos e posteriormente demonstráveis, partindo de mera intuição dos agentes policiais, de modo que “

A subsequente (e sempre eventual) apreensão efetiva de drogas não é capaz de suprimir a ilicitude que lhe antecedeu. A norma prevista no inciso XI do art.  da Constituição não admite interpretação ampliativa de modo a viabilizar violações do domicílio, do asilo, sem base constitucional (Tribunal de Justiça/RS, Terceira Câmara Criminal, Apelação n.º 70059054452, Rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro, julgada em 23.03.2016).

A Polícia que trate de investigar e amparar suas diligências em mandados judiciais ou, então, que desencadeie medida de ingresso forçado em casa alheia quando tiver presente prévia situação a indicar quadro de flagrante delito, possibilitando, assim, que suas ações sejam submetidas posteriormente ao crivo do Poder Judiciário.

Cuida-se, apenas, de tratar a regra como regra, e a exceção como exceção.

Fonte: Canal Ciências Criminais

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