A interpretação do Direito Administrativo, além da utilização analógica das regras do direito privado que lhe foram aplicáveis, há de considerar, necessariamente, três pressupostos: (...)

 Direito Administrativo:


S-A interpretação do Direito Administrativo, além da utilização analógica das regras do direito privado que lhe foram aplicáveis, há de considerar, necessariamente, três pressupostos:

1º) a desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados;

2º) a presunção de legitimidade dos atos da administração;

3º) a necessidade de poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público.


a) Certo (x)

b) Errado




Segundo a Revista de Direito Administrativo Contemporâneo no artigo de GUILHERME GONÇALVES ALCÂNTARA intitulado Princípios e Fundamentos do Direito Administrativo; Atos Administrativos: Aplicações Concretas 

(...)

Acredita-se – com a Nova Crítica do Direito –, entretanto, que a instituição do Estado Democrático de Direito e a principiologia constitucional que lhe representa configuram uma ruptura com a ordem jurídica anteriormente vigente, razão pela qual o tradicionalíssimo conceito de “supremacia do interesse público”, diferente do que afirma a doutrina comum, não mais se coaduna com a “supremacia constitucional” indicativa do Constitucionalismo Contemporâneo. 

Assim, defendo que, no senso comum teórico, a noção de “supremacia do interesse público” – e seus três pressupostos interpretativos – forma uma (forte) resistência à autêntica entrada dos princípios constitucionais no direito administrativo. Torna-se importante, portanto, abordar por um breve instante nosso adversário: o interesse público e o significado de sua “supremacia”. Deixemos – na esteira da “melhor hermenêutica” – que ele nos diga algo. Faço este exercício mediante o exame do que a doutrina comum diz a respeito daqueles três pressupostos tradicionais – e distintivos – do direito administrativo, que bem lhe manifestam: desigualdade jurídica entre Administração e administrado; presunção de legitimidade dos atos da Administração; e discricionariedade outorgada aos atos administrativos:


A desigualdade jurídica entre Administração e administrados 

Uma primeira forma de abordar a supremacia do interesse público no senso comum teórico do direito administrativo é em relação a que(m) essa supremacia se impõe. Neste sentido, a doutrina nacional é unânime em justificar que a supremacia do interesse público se exerce sobre o direito privado. 

É a partir de institutos como o poder de polícia (restringindo atividades individuais) e a desapropriação (que suprime o direito de propriedade) que a doutrina do direito administrativo – positivista – costuma enxergar a aplicação do (agora) “princípio” da supremacia do interesse público, dando a entender que existe uma hierarquia entre as liberdades negativas – conquistadas pelo Estado liberal – e os direitos sociais – do Estado Social –, na qual estas prevalecem sobre aquelas (Carvalho Filho, 2009, p. 31). 6 

Assim é que Hely Lopes Meirelles justifica a desigualdade jurídica dos administrados em relação à Administração Pública, argumentando que é próprio e característico do Direito Público que a assimetria exista, tendo em conta que a igualdade jurídica das partes na relação jurídica é própria do Direito Privado. 

Transcrevo: “Com efeito, enquanto o Direito Privado repousa sobre a igualdade das partes na relação jurídica, o Direito Público assenta em princípio inverso, qual seja, o da supremacia do Poder Público sobre os cidadãos, dada a prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais. Dessa desigualdade originária entre a Administração e os particulares resultam inegáveis privilégios, prerrogativas para o Poder Público, (...) que não podem ser desconhecidos ou desconsiderados pelo intérprete ou aplicador das regras e princípios desse ramo do Direito. Sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o objetivo primacial da Administração é o bem comum” (2014, p. 50). 

Abordarei melhor a (falsa) dicotomia entre Direito Privado e Direito Público oportunamente. Para o momento, quero chamar atenção ao tratamento que Kelsen dá à matéria. 

Para a teoria pura do direito, tal dualismo não significa nada, possuindo sentido meramente ideológico (lembro que o normativismo jurídico se afirma anti-ideológico), pois a concepção de norma jurídica como ato de vontade do detentor dos meios coercitivos estatais imbrica na absoluta fusão entre direito e Estado (Kelsen, 2013, p. 166). 

Logo, se levarmos em consideração o conselho de Kelsen, somos forçados a concluir que não existe Direito Privado, pois, se o direito se define pela ordem imposta pelo Estado – independente do seu conteúdo (Kelsen, 2013, p. 88-89) –, todo direito é Direito Público e, de fato, para o normativismo jurídico todos os sujeitos à imposição de um comando estatal, por estarem sujeitos à vontade da autoridade (Kelsen, 2013, p. 153-154), estão em posição de desigualdade jurídica em relação ao Estado. Quero dizer que o paradigma positivista de teoria do direito, na sua feição mais sofisticada, de Kelsen e Hart, estende, com efeito, o dogma da desigualdade jurídica entre cidadãos e Estado a todos os ramos do direito, presumindo – ipso facto – que o ato de vontade da autoridade contém o bem público, o bem da coletividade, que se sobrepõe a qualquer direito ou garantia individual. A discussão da justiça da norma é questão de teoria política (Kelsen, 2013, p. 81-82). 

No mesmo sentido caminha o segundo desdobramento da “supremacia do interesse público” no direito administrativo, que abordo a seguir. 

A presunção de legitimidade dos atos da Administração 

Ainda com Meirelles, extraímos que o senso comum teórico dos juristas entende que a Administração é isenta da prova de legitimidade dos seus atos, visto que uma presunção acerca da validade acompanha toda a atividade pública, cabendo ao particular demonstrar – de forma inequívoca – o abuso ou desvio de poder (Meirelles, 2014, p. 51). 

Mesmo nas obras “facilitadoras”, destinadas à preparação dos candidatos aos certames públicos – isto é, à formação do senso comum teórico das potenciais autoridades estatais –, lá está a presunção de legitimidade como efeito “indireto” da supremacia do interesse público (Alexandrino, 2015, p. 205). 

Abordando um ponto de vista mais sofisticado, Maria Sylvia Zanella Di Pietro subdivide a presunção de legitimidade dos atos administrativos (alçado também a status de “princípio”) em dois aspectos: um vinculado à veracidade e certeza dos fatos e outro ligado à legalidade do ato, com o objetivo de colocar o ônus da prova contrária a estas suposições a cargo do administrado, bem como garantir às decisões administrativas execução imediata (Di Pietro, 2014, p. 69). 

O paradigma positivista mais uma vez se revela, embora de modo instintivo, no senso comum teórico dos juristas, escondendo a arbitrariedade dos atos da autoridade estatal mediante presunções ipso facto de normatividade dos atos legislativos, judiciários e executivos, necessárias à pureza metodológica do normativismo, para que o saber jurídico somente reproduza de modo descritivo o seu objeto, não interferindo (acredita ela) na sua produção (Warat, 1983, p. 118-119). 

Para arrematar a questão, preciso apresentar a última manifestação clássica da supremacia do interesse público no direito administrativo: a discricionariedade da autoridade. 


O poder discricionário do administrador 

É neste ponto que encontro a maior identidade entre a doutrina tradicional do direito administrativo e o paradigma positivista-autoritário que lhe aprisiona. Inicio transcrevendo a lição de Maria Sylvia Di Pietro, justificando a discricionariedade dos atos administrativos: 

“Sob o ponto de vista jurídico, utiliza-se a teoria da formação do Direito por degraus, de Kelsen: considerandose os vários graus pelos quais se expressa o Direito, a cada ato acrescenta-se um elemento novo não previsto no anterior; esse acréscimo se faz com o uso da discricionariedade; esta existe para tornar possível esse acréscimo. Se formos considerar a situação vigente no direito brasileiro, constataremos que, a partir da norma de grau superior – a Constituição –, outras vão sendo editadas, como leis e regulamentos, até chegar-se ao ato final de aplicação ao caso concreto. Em cada um desses degraus, acrescenta-se um elemento inovador, sem o qual a norma superior não teria condições de ser aplicada” (2014, p. 221-222). 

Desta posição não difere o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, que divide – denunciando o caráter normativista do seu raciocínio – a questão da discricionariedade dos atos administrativos em exame da norma jurídica e exame do caso concreto (2011, p. 427-429) – como se fosse possível separar estes “âmbitos”. 

Neste sentido – demonstrando compreender profundamente Hart – Mello afirma que 

“(...) se os antecedentes fáticos que legitimam a prática de um ato estão delineados por meio de palavras vagas, imprecisas, cabe à Administração determinar-lhes concretamente o alcance na espécie, cingida, embora, a certos limites adiante explanados” (2011, p. 958). 

Por isso, o professor conclui que a discricionariedade surge quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, não é possível extrair uma única solução para o caso concreto. Daí surgiria essa “liberdade” remanescente ao administrador (Mello, 2011, p. 961). 

Sobre a relação entre a discricionariedade e a noção de supremacia do interesse público, aponto as lições de José dos Santos Carvalho Filho, para quem o poder discricionário do administrador é prerrogativa de eleger, entre os diversos sentidos que se possa dar aos comandos legais que dirigem a atividade pública, o que melhor convir ao interesse público (2009, p. 47). 

No mesmo caminho, a doutrina descomplicada – para “concurseiros” (Alexandrino, 2015, p. 244). 



Conclusão parcial 

Esbocei de forma breve três cânones interpretativos que – segundo a doutrina tradicional – caracteriza(ria)m a especificidade do Direito Administrativo. Quero provar que a doutrina comum está errada nesta assertiva e posso fazer isso de duas maneiras: com Kelsen e Hart, posso demonstrar que estes três cânones são imanentes a todas as normas jurídicas, não apenas ao direito administrativo (este apenas constitui sua melhor representação no senso comum teórico); e, por outro lado, superando Kelsen e Hart, posso expor a crise da teoria jurídica no Brasil e as insuficiências de uma teoria pura do direito – e sua representação em nosso horizonte de sentidos – no paradigma do Estado Democrático de Direito. 

A primeira crítica – interna, pois joga com o positivismo (e com a filosofia da consciência) do qual a teoria jurídica brasileira ainda é refém – parte da já adiantada crítica de Kelsen à dicotomia Direito Privado e Direito Público, para o qual a divisão só possui sentido ideológico e não teórico, pois todo direito é objetivo e público (estatal), no qual quaisquer liberdades (negativas, positivas) se justificam somente mediante as ordens estatais, radicalizando: o único direito fundamental é o de ser tratado conforme convir ao Estado (Abboud, 2011, p. 07). 

Com efeito, esta crítica (contra o dualismo Direito Privado x Direito Público) não faz só Kelsen, mas muitos outros filósofos do direito. Wieacker, por exemplo, destaca que o último conjunto coerente do direito privado foi a (burguesa) pandectística alemã do século XIX, fundada na ética da autonomia de Kant. Nela, o direito privado (direito de propriedade e liberdade contratual) é “um sistema de esferas de liberdade da personalidade autônoma do ponto de vista moral” (Wieacker, 1967 p. 717). 

Qual a consequência disso? É que se todo cidadão está à mercê da vontade da autoridade (e a teoria pura do direito e sua hermenêutica denotam isto, como poderei demonstrar), o discurso tradicional da doutrina brasileira de que onde há função administrativa não há vontade pessoal da autoridade (Mello, 2011, p. 98) é uma falácia que mascara um paradigma autoritário de direito, caso não caiba à doutrina jurídica doutrinar os juristas. 

O fato é que, no paradigma positivista de teoria jurídica, a desigualdade entre Estado e indivíduo não é especialidade do direito administrativo, antes faz parte da teoria geral do Direito. Kelsen deixa claro que o direito subjetivo – como “instituição ante a qual a estrutura interna do ordenamento jurídico se encontra diante de uma barreira intransponível” (2013, p. 105) – é uma criação ideológica e, portanto, não merece consideração na teoria jurídica (2013, p. 104-110). 

A Teoria Pura do Direito reduz todos os direitos subjetivos a direitos objetivos, seja na forma de autorizações ou deveres, levando às últimas consequências as ideias fundamentais que já existiam no positivismo oitocentista ao afirmar que “o direito subjetivo não é diverso do objetivo: é o próprio direito objetivo” (Kelsen, 2013, p. 109). 

Repito, com Georges Abboud, que se trata de uma ciência jurídica própria do paradigma estatalista de direito, mediante o qual só existe um direito fundamental: o de ser tratado conforme a vontade da autoridade investida (pelo direito objetivo) (2011, p. 7) e, aqui, não existe espaço para igualdade jurídica entre cidadão e Estado em nenhum ramo do direito. 

Não foge desta noção a outra crença que se diz própria do direito administrativo: a da presunção de legitimidade dos atos administrativos, que nada mais reproduz no senso comum teórico dos juristas do que o desinteresse da teoria do direito positivista pela autointerpretação do material histórico-social dos atos jurídicos (Kelsen, 2013, p. 69-70). 

Para Kelsen, não só os atos administrativos presumem-se dotados de validade e certeza – no esteio da lição de Maria Sylvia Di Pietro –, mas todos os atos jurídicos, visto que: 

“A indagação sobre qual das várias possibilidades na moldura de uma norma é a ‘justa’ é não uma indagação dirigida ao conhecimento do direito positivo, não um problema jurídico-teórico, mas político-jurídico” (Kelsen, 2013, p. 153). 

Esse trecho – que ilustra muito bem a hermenêutica normativista, adiante tratada – denota o caráter antiideológico da Teoria Pura do Direito, que se limita (creem alguns) a descrever “o direito como ele é, sem legitimá-lo como justo ou desqualificá-lo como injusto” (Kelsen, 2013, p. 81). Daí a presunção de legitimidade de todas as normas jurídicas, da Constituição a uma portaria. 

E é por isso, também, que o último dogma do direito administrativo – a outorga de poderes discricionários da Administração – não é característico (apenas) deste ramo do direito, pois a teoria geral do direito (positivista) não está autorizada a indicar como a autoridade deve aplicar/executar uma lei, cabendo-lhe somente catalogar as diversas possibilidades de interpretação a serem escolhidas pela autoridade (Kelsen, 2013, p. 150). Isto é, esteja-se diante de uma indeterminação “intencional” ou “não intencional” do texto legal, a autoridade executora (juiz ou administrador 8 ) sempre terá diante de si a pluralidade de significados na palavra ou frase que “expressa” a “norma” (Kelsen, 2013, p. 148-149). Combinando este fator com o “caráter anti-ideológico” da Teoria Pura do Direito – que não lhe permite interpretar a norma jurídica como faz a autoridade (administrativa, legislativa ou judiciária) –, temos a discricionariedade como elemento imanente a todo o direito positivo. 

Todos estes pontos nos levam a uma conclusão: a da plena vinculação da supremacia do interesse público, e seus dogmas interpretativos no direito administrativo, ao paradigma positivista do direito (e de teoria do direito, expressa de forma mais sofisticada no normativismo kelseniano-hartiano). A apropriação de conceitos da teoria geral do direito (positivista) e sua reprodução no senso comum teórico dos juristas como termos específicos e próprios (garantidores de autonomia disciplinar) do direito administrativo só significa que este ramo do direito é um dos que podem ofertar as maiores resistências a uma filtragem hermenêuticoconstitucional do seu conteúdo. 

A noção de discricionariedade (presente da Escola do Direito Livre ao normativismo de Kelsen e Hart), traduzida no fato de que, no momento da decisão, existe sempre uma zona de penumbra da razão, a ser preenchida pelo arbítrio do aplicador/produtor da norma jurídica (Streck, 2011, p. 38), é o que uma teoria do direito fundada no contexto intersubjetivo (avesso a solipsismos e seus discursos monológicos) típico do Estado Democrático de Direito precisa se defrontar. 

Essa tarefa só pode ser executada mediante a segunda crítica que me propus a fazer no início desta conclusão parcial e que coloco como objetivo do próximo tópico.




GUILHERME GONÇALVES ALCÂNTARA 

Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal no Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP. Professor assistente de Direito Administrativo no Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP. Advogado. guilhermealcantara@msn.com





Nota:  Discricionariedade é a liberdade de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei, ou seja, a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas, porém, válidas perante o direito

Postar um comentário

0 Comentários

Postagem em destaque

14 | CURSO SEI -Abrindo processo anexado-AULA : 08-BLOCO: 02